Senti muito quando se proibiu a leitura de muitos livros em castelhano, porque alguns muito me deleitavam, e eu não poderia mais fazê-lo, pois os permitidos estavam em latim; o Senhor me disse: Não sofras, que te darei livro vivo. Eu não podia compreender porque Ele me dissera isso, pois ainda não tinha tido visões. Mais tarde, há bem poucos dias, o compreendi muito bem, pois tenho tido tanto em que pensar e em que me recolher naquilo que me cerca, e tenho tido tanto amor do Senhor, que me ensina de muitas maneiras, que tenho tido muito pouco ou quase nenhuma necessidade de livros. Sua Majestade tem sido o livro verdadeiro onde tenho visto as verdades. Bendito seja esse livro, que deixa impresso na alma o que se há de ler e fazer, de modo que não se pode esquecer.

Santa Teresa d´Ávila

[Livro da Vida, p. 171. Em: Teresa de Jesus. Obras Completas. Texto estabelecido por Fr. Tomas Alvarez, O.C.D. Direção Pe. Gabriel C. Galache, SJ. Tradução de Adail Ubirajara Sobral e outros. – São Paulo: Edições Carmelitanas: Edições Loyola, 1995.]

Santa Teresa d´Ávila foi a primeira mulher a receber o título de Doutora da Igreja.  Sua história pode ser considerada uma das mais paradigmáticas no que diz respeito à iniciação cristã. Embora tendo muito cedo se decidido pela vida religiosa, o seu avanço rumo à união com Cristo – anelo de toda sua busca e, em última instância, da de qualquer cristão autêntico -, é uma sucessão de avanços e recuos muitas vezes desalentadores. Mas é exatamente pelo fato de sua busca ter sido tão cheia de percalços, de idas e vindas, de momentos de euforia e desolação, que a sinto tão próxima de mim, se assim posso dizer.

Creio que a vida tem um sentido, uma meta. Acredito que todos nós temos uma missão, um objetivo a cumprir. O itinerário pode ser feito de muitas maneiras e, é claro, varia de pessoa para pessoa. Penso, porém, que para quem nasceu em países de tradição cristã, esse itinerário ainda é uma via segura e confiável pela qual se pode trafegar em busca de conferir um sentido à existência. Quanto a isso, o modelo primordial é, seguramente, Jesus Cristo, que Jung dizia ser o protótipo do homem individuado.

Mas como buscar a Cristo? Onde  encontrar  o mapa que vai nos indicar o itinerário, o caminho, as vias por onde devemos trafegar? É aí que entram em cena os místicos, seguramente os guias mais confiáveis e mais indicados para apontar o caminho que se deve seguir. Gosto dos místicos porque, a exemplo do que acontece com todos que encetam essa busca, foram pessoas que lutaram consigo mesmas, que assumiram seu corpo e espírito como um campo de batalha onde tem lugar a grande e inexorável refrega.

E por que os místicos podem ser considerados guias tão seguros? A resposta é que eles conseguiram a tão almejada vitória, que não é outra coisa senão o encontro com Aquele que tudo nos pode dar, o único que pode ratificar o sucesso ou insucesso da batalha.

No caso de Santa Teresa d´Ávila, durante muito tempo, quando travava a batalha interior ao longo da terrível noite escura da alma, não encontrou quem a socorresse, quem lhe desse alguma palavra de consolo. Por isso, teve que se amparar nos livros na tentativa de entender o que estava lhe acontecendo. Chega um momento, porém – um dos mais gloriosos de sua atribulada busca -, em que seus esforços são, finalmente, recompensados, quando o próprio Mestre lhe aparece para comunicar a ela que, de ora em diante, não mais precisará de livros, pois Ele mesmo lhe dará um livro bem mais valioso, um livro vivo, ou seja, a partir de então Ele próprio será o seu instrutor. O que mais alguém poderia desejar?

Para concluir, quero citar um trecho do Evangelho de João que, cada vez que o leio, me faz lembrar o episódio da vida de Santa Teresa d´Ávila aqui narrado:

Vós perscrutais as Escrituras porque julgais ter nelas a vida eterna; ora, são elas que dão testemunho de mim; vós, porém, não quereis vir a mim para ter a vida. (João 5,39-40)

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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