Cá da janela do apartamento onde moro fico olhando os humanos que passam lá embaixo numa pressa infernal. Para onde caminham todos eles? O que querem da vida? Será que eles sabem aonde vão? Não sei não, acho estes humanos uns atrapalhados. Às vezes me parecem um monte de bobalhões que não sabem por que nem para que vivem, embora vivam se perguntando sobre seus motivos. Parece que eles gostam de complicar as coisas.

Eu, de minha parte, não complico nada. Eu não me pergunto por que vivo, pra que isso? Fico olhando pro Domvasco, aqui do lado, ocupado com os seus livros. Meu Deus, como este homem precisa de livros! Passa o tempo lendo. Parece que quando ele está em casa não sabe fazer outra coisa. Até pelo chão há livros espalhados. Coitado! Acho que ele não sabe muito o que fazer com tanta leitura, se é que ler tanto serve pra alguma coisa. Talvez ler demais só faça é confundir as ideias.

Cá pra nós, falo assim mas eu também gosto de livros, mas não pelos mesmos  motivos que ele. Qualquer dia desses vocês vão saber por que também gosto de livros.

Mas aprecio mesmo é a paz da minha janela. Gosto de ficar aqui pela manhã e à tarde. Esta janela é o melhor lugar do mundo. Quer dizer, não exatamente. Há outros lugares aqui neste apartamento que também considero os melhores lugares do mundo. Portanto, está dito: tenho vários melhores lugares do mundo, e esta janela onde me encontro agora é apenas um deles.

Mas esta janela é especial. Ao entardecer, então, é uma maravilha! De onde estou vejo um belo pôr-do-sol que me faz sentir uma preguiça gostosa e uma vontade de nunca mais sair daqui. Quando o sol vai descendo e começa a se esconder ali por trás duns prédios que ficam pras bandas de lá, sinto seus raios tocando meu pelo amarelo e sedoso. Já ouvi Domvasco comentar que nessas horas meu pelo parece ser feito de fios de ouro. Então me sinto um gato de ouro.

Sentir-se um gato de ouro serve pra alguma coisa? Sei não, esse negócio de brilhar demais não sei se é bom. Não é bom chamar muita atenção. Imagine o que fariam de mim se descobrissem que tenho pelos de ouro? Acho que o pessoal aqui em casa não ia se importar muito com isso não, mas que ia chamar atenção, ia. Os humanos precisam tanto de novidades, que todo mundo ia querer ver o gato de pelos de ouro.

Fico pensando como seria isso. Já imagino este apartamento cheio de gente querendo me ver. Pobre Domvasco, não ia mais ter um minuto de sossego. Como ia poder fazer as suas leituras? E escrever, como seria isso, ele que precisa se recolher pra escrever? Porque, caso vocês não saibam, vou contar um segredo: este sujeito é um tipo assim meio eremita, sabe?

Pois é, acho que ele não ia aguentar. A Naza e a Dila também não iam gostar dessa história de ter a casa sempre cheia de gente por minha causa. Imagina quando começassem a desarrumar a sala, como ia ser isso?

Sabe, outra coisa me ocorre: será que ia despertar a cobiça? Em alguns eu acho que sim. O ouro produz uma febre capaz de levar algumas pessoas a verdadeiras convulsões. Eu sei muito bem como agem os humanos quando a febre de ter se apossa deles. Não, eu não quero ser um gato de ouro.

Aliás, só agora reparei que o sol já se escondeu totalmente. O meu pelo continua amarelo e sedoso como sempre, mas é apenas o meu pelo, aquele que sempre tive.

Não, eu não gostaria de ser um gato de pelos de ouro. Basta-me o carinho que recebo da Dila, Naza e Domvasco. Este foi o bem maior que me coube, e isso já é ouro suficiente para eu viver feliz e confortável estas minhas sete vidas.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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