Nos últimos anos, tornei-me um dedicado amante de gatos, e agora reconheço a criatura claramente como um espírito felino, um Familiar.

William Burroughs

[Burroughs, William. O gato por dentro. Tradução Edmundo Barreiros. – Porto Alegre, RS: P&PM, 2012, p. 12. (Coleção L&PM POCKET; v.547]

Ainda impactado por um fato acontecido ontem quando o dia apenas raiava, hoje acordei sentindo uma enorme vontade de reler O gato por dentro, livro de William Burroughs, adquirido por mim há alguns anos.

O autor, uma figura prá lá de controversa, foi, como ele mesmo afirma, um amante de gatos. Tinha vários em sua casa, com os quais travou uma convivência muito íntima. Para Burroughs, os gatos eram muito mais que simples animais de estimação. A propósito, e para que se possa ter uma noção do patamar em que ele colocava esses felinos, cito aqui um trecho em que comenta a possível gênese da domesticação desses animais:

“Indícios apontam que os gatos foram domesticados pela primeira vez no Egito. Os egípcios armazenavam grãos, que atraíam roedores, que atraíam gatos. (Não há prova de que isso tenha acontecido com os maias, apesar de haver um grande número de gatos selvagens nativos na área.) Não acho que isso seja exato. Sem dúvida não é a história toda. Gatos não começaram como caçadores de ratos. Doninhas, cobras e cães são mais eficientes como agentes de controle de roedores. Eu postulo que os gatos começaram como companheiros psíquicos, como Familiares, e nunca se afastaram dessa função” (p. 16).

A ideia de gatos serem companheiros psíquicos muito me atrai. Essa hipótese foi para mim um verdadeiro achado. Tenho uma experiência de convivência com gatos que remonta há algumas décadas. Isso me leva a afirmar que eu não hesitaria em dizer que concordo com o postulado de Burroughs. Penso que não seja mera ficção ou lenda a associação desses felinos à bruxaria. Não se pode conceber a ideia de uma bruxa ou de um bruxo sem um gato. Parece-me plausível a hipótese de que essa associação esteja diretamente ligada à ideia de uma conexão psíquica entre esses dois entes, já que bruxos e bruxas têm suas práticas ancoradas na manipulação de energias e forças sobrenaturais.

Para quem priva do convívio com gatos – e, quiçá, até para aqueles a quem nunca ocorreu tal possibilidade -, a leitura de O gato por dentro se constitui numa experiência de puro deleite. Ao longo de suas páginas, o leitor vai se deparar com trechos muito instigantes, alguns bastante impactantes, tanto pelo conteúdo quanto pela concisão, dispensando explicações mais longas, mas levando à reflexão, como essa, por exemplo: “O gato não oferece serviços. Ele se oferece” (p. 18).

William S. Burroughs nasceu em 1914, em St. Louis, Estados Unidos. Na década de 40 mudou-se para Nova York, onde iniciaria sua carreira literária e faria amizade com Jack Kerouac e Allen Ginsberg, entre outros escritores beat. Teve inúmeras experiências com alucinógenos e no início da década de 60 viajou pela América do Sul em busca do yage, também conhecido como ayahuasca. Faleceu em Lawrence (Kansas), em agosto de 1997.

A capa da edição aqui comentada de O gato por dentro traz a seguinte informação: “Um livro sobre como o convívio com gatos pôs Burroughs em contato com seu próprio eu.” (Harper’s Bazaar).

Depois do que me aconteceu ontem, não tenho dúvidas quanto à veracidade do que é afirmado no comentário acima. Mas sobre isso falarei em outra ocasião. Para concluir, destacarei um último trecho em que Burroughs fala da simbiose entre ele e seu gato branco, e que remete a esse contato com o próprio eu:

“O gato branco simboliza a lua prateada que se intromete nos cantos e purifica o céu para o dia seguinte. O gato branco é o “limpador”, ou “o animal que se limpa”, descrito pela palavra em sânscrito Margaras, que significa “o caçador que segue a trilha; o investigador; o rastreador ágil”. O gato branco é o caçador e o matador, e seu caminho é iluminado pela lua prateada. Todos os lugares e pessoas escondidos nas sombras são revelados sob essa luz suave inexorável. Você não consegue afastar seu gato branco porque seu gato branco é você. Não pode se esconder de seu gato branco, porque seu gato branco se esconde em você” (p. 39).