Mamãe, tenho também uma alegria na vida: tenho amigos tão formidáveis para mim que você nem pode imaginar. Todos, neste momento, sofrem de uma epidemia de simpatia. Bonnevie me procura sempre, Sallès escreve-me cartas de uma amizade tão profunda que me emocionam. Ségogne é um anjo. Os Saussine, anjos protetores, e não falo em Yvonne e Mapie…

[Saint-Exupéry, Antoine de. Cartas do Pequeno Príncipe. 7ª. ed. Tradução de Magda Soares Guimarães. – Belo Horizonte: Itatiaia, 1969, p. 87.]

Em qualquer lugar que se mencione o nome de Saint-Exupéry imediatamente alguém lembra O Pequeno príncipe, seu livro mais conhecido. Entretanto, este genial escritor francês que foi também um grande aviador deixou outros escritos igualmente belos, como, por exemplo, Cidadela, livro que aprecio bem mais que o primeiro.

Pois bem, sexta-feira da semana passada aconteceu de chegar às minhas mãos mais um livro da lavra de Saint-Exupéry, livro este de cuja existência eu nem sabia. Trata-se de uma publicação contendo diversas cartas de Saint-Exupéry. A edição que chegou até mim é de 1969, e a adquiri por intermédio do Jorge, um livreiro que garimpa livros em sebos ou entre professores aposentados e colecionadores que resolvem se desfazer de suas coleções e o entregam a ele para que ofereça a possíveis interessados. Sempre que Jorge descobre algum livro que imagina que possa ser do meu interesse, bate logo à minha porta. Tenho feito algumas aquisições muitas boas por seu intermédio. Cartas do Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, foi o mais recente.

A obra divide-se em três partes: Carta a um refém, Cartas a sua mãe e Cartas da juventude. A primeira parte traz um Prólogo escrito por Madame de Saint-Exupéry, a mãe do escritor e destinatária das cartas iniciais. Madame de Saint-Exupéry inicia o texto com as seguintes palavras: Escreveram a respeito de Antoine de Saint-Exupéry: “Sabemos que ele não conheceu a paz. Pensava apenas em distribuir o essencial, menos aos sedentários, aos satisfeitos, que aos impacientes, aos que queimam, seja qual for o fogo que os inflama”. Estava ela citando as palavras que Pierre Macaigne escreveu sobre o seu filho.

Prosseguindo, diz a emocionada mãe: É a estes que é dirigida a mensagem de Antoine, porque ele encontrou as mesmas alegrias, as mesmas dificuldades, as mesmas esperanças, talvez os mesmos desesperos (p. 29).

É isso o que me fascina em Saint-Exupéry, que perpassa Cidadela de ponta a ponta, e que agora volto a encontrar lendo suas cartas. Um homem que ardeu no fogo da paixão pelas causas que assumiu enquanto viveu. Um homem inquieto, movido totalmente por aquele élan que caracteriza os verdadeiros buscadores, os verdadeiros espíritos que têm sua grandiosidade maior ancorada no anseio pelo divino, pelo eterno, pelo intemporal.

Mas Exupéry era também um homem que tinha um grande apreço pela amizade. Ele amava verdadeiramente os amigos e amigas que tiveram o privilégio de privar de sua convivência e com quem partilhava com prazer sua intimidade e seus momentos de busca e solidão quando separados pela distância. Escrever cartas foi a forma que ele encontrou de suprir a saudade desses grandes amigos e amigas.

Renée de Saussine, uma das amigas com quem ele manteve uma intensa troca de correspondências, escreveu o Prefácio para a parte do livro intitulada Cartas da juventude. A certa altura, escreve Renée: Com Antoine agora longe, nós, seus amigos escrevíamos. Eu escrevia. Mas não muito. Não muito depressa. Esse fluido anti-solidão  que ele pedia, precisávamos, como os convalescentes, de tempo para refazê-lo. E as cartas cruzavam-se, nós sem separarmos suficientemente do ´amor pela amizade´ o amor só, que vai mais depressa. Ele, enviando de Toulouse, sua base, as primeiras impressões de uma nova existência (p. 130).

Em outro trecho, ela compara de forma muito bela o amigo a um violino Stradivarius: Se compararmos a ressonância humana e poética de Antoine a um Stradivasius, devemos atribuí-la à qualidade de sua alma. Como no instrumento precioso, esse fogo vibrante, colocado no lugar exato, tudo permite. A inacreditável pressão das cordas, do braço, do arco, essa prova, a ´alma´ a suporta, coroa-a com um canto (p. 131).

Em uma carta a Renée, a quem ele tratava por Rinette, Exupéry fala da necessidade de cultivar o pensamento: Rinette, veja você, só através de uma disciplina permanente pode-se educar o pensamento, e é justamente isto o que se possui de mais precioso. O que se deveria possuir de mais precioso. Mas você observa que as pessoas se procuram aumentar a memória, os conhecimentos, a habilidade verbal, quase nunca procuram cultivar a inteligência. Procuram raciocinar com exatidão mas não a pensar com exatidão. Confundem tudo (p. 143).

Na última carta escrita para Rinette, fala da sua ânsia pelas correspondências recebidas dos amigos: Em Toulouse, eu ia de hora em hora, do outro extremo da cidade, ver minha caixa de cartas” (p. 166) e, a seguir: E escrevia à noite, do Café Lafayette, cartas cujas frases não tinham importância mas que escondiam meus segredos sob a entonação das palavras (p. 166).

Ainda estou lendo Cartas do Pequeno Príncipe, e seguramente ainda escreverei outros comentários a este livro no Sincronicidade. Mas, por hoje, gostaria de concluir citando as palavras finais de Madame de Saint-Exupéry no Prólogo a que me referi no início do texto:

Na última carta que temos de Antoine, há este trecho: “Se eu voltar, minha preocupação será: Que é preciso dizer aos homens?” Foram essas palavras que me decidiram a partilhar com os outros sua mensagem (p. 40).

Ainda bem que Madame de Saint-Exupéry aquiesceu em publicar as cartas de seu filho, pois são muitas e preciosas as palavras que ele nos deixou. Com seus escritos, Exupéry respondeu de forma magnânima à sua própria pergunta: Que é preciso dizer aos homens?

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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