E agora, meu caro bibliófilo aprendiz, de que mais podemos conversar? Já proseamos bastante (talvez demais, na sua opinião) e falta ainda muita coisa que eu gostaria de lhe dizer. Mas, prosa sobre livros não tem fim. Você já deve estar cansado. Quer fechar este livro e ir cuidar da vida. Se cuidar da vida é, para você, ganhar mais dinheiro, digo-lhe que não vale a pena. Ganhar muito dinheiro dá enfarte. Sempre haverá o bastante para comprar-se um livrinho ambicionado. O resto é vão e não vale o sonho imenso de quem gosta de livros raros. Não vive verdadeiramente quem não gosta de dar uma prosa com um amigo ou ler um livro com vagar. Desejo-lhe que tenha sempre tempo para prosear sobre livros. Quando nos encontrarmos de novo, espero que seja você quem me conte coisas sobre livros e me diga os exemplares raros que já possui.

Rubens Borba de Moraes

[Moraes, Rubens Borba de. O bibliófilo aprendiz. – 4ª. ed. – Brasília, DF: Briquet de Lemos/Livros: Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2005, p. 205.]

“Falar de livros é a melhor das prosas. Mas está se perdendo o hábito de prosear. Não se proseia mais em portas de livraria, não há mais café onde se possa conversar, não se vai mais à casa de um amigo dar uma prosa, com medo de perturbar o seu programa de televisão ou um joguinho de cartas. Não se proseia mais no Brasil, perdeu-se essa arte, tão boa e tão gostosa” (p. 13). São palavras de Rubens Borba de Moraes, um de nossos maiores bibliófilos, no Prefácio do seu O bibliófilo aprendiz, palavras que ressoam com um misto de lamento, provocação e convite.

É isso mesmo, o livro é um lamento por se ter perdido ou, pelo menos, olvidado, a maravilhosa arte da prosa, mas é, também, uma provocação e um convite a repormos em cena entre amigos esse saudável e esquecido hábito.

Em O bibliófilo aprendiz, o autor dá muitas e valiosas dicas a quem quer se tornar ou já se iniciou, mas ainda está dando os primeiros passos,  no ainda restrito e maravilhoso mundo da bibliofilia.

Escrito em linguagem coloquial, esse é um daqueles livros que se lê como quem conversa com o autor, sentado confortavelmente numa poltrona cercado por livros de todos os matizes, degustando uma deliciosa e fumegante xícara de café (desde que não seja aquele tipo de café servido certa vez a ele, quando de sua visita a uma pessoa que possuía uma obra rara de seu interesse. Na ocasião, lhe ofereceram, segundo suas palavras, “um café marca três ff: fraco, frio e fedido” (p. 39)).

A emoção do encontro com os livros, a volúpia – essa é a palavra empregada pelo autor, cujo uso, nesse contexto, agradou-me sobre maneira – de conseguir uma obra rara, durante muitos anos almejada; a surpresa das descobertas durante um périplo dedicado a buquinações, estão presentes em cada página, como na descrição que faz do momento em que tomou em suas mãos a primeira edição de uma obra raríssima, há muito procurada por ele:

“Confesso que peguei o volume, convencido de que não se tratava da tal primeira edição, mas uma outra qualquer sem grande valor. Quando o abri na página de rosto vi, vi com estes olhos que a terra há de comer o mais tarde possível, que era mesmo o meu livro sonhado, a primeira edição em perfeito estado, com todas as margens, por encadernar. Agradeci a meus pais por me terem provido de um bom e sólido coração, pois era caso de enfarte por emoção violenta” (p. 40).

Lindas palavras! Só sabe o que é isso quem traz no sangue a volúpia pelos livros. O autor de O bibliófilo aprendiz era, seguramente, todo ele, corpo e alma, impregnado por tal volúpia.

Rubens Borba de Moraes

Rubens Borba de Moraes nasceu em Araraquara, SP, em 1899, e faleceu em 1986, na cidade de São Paulo. De 1945 a 1947, ocupou o cargo de diretor da Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e de 1954 a 1959 foi diretor da Biblioteca da ONU, em Nova York. Sua obra inclui, dentre outros, a monumental Bibliographia brasiliana e Livros e bibliotecas no Brasil colonial.

Achei muito interessante O Aviso, posto no final de O bibliófilo aprendiz, verdadeiro libelo à inevitável falibilidade do homem, condição primordial e fundante de sua humanidade: “Este livro foi redigido, composto, revisto e impresso por seres humanos e não por máquinas exclusivamente. Esse fato, por enquanto inelutável, explica os enganos e erros que contém” (p. 207).

Para concluir, quero registrar uma feliz sincronicidade: sem que me desse conta do fato, iniciei a leitura de O bibliófilo aprendiz anteontem, 12 de março, dia do biblioteconomista. Deus seja louvado por me conceder a graça de viver uma vida ilustrada por tantas e tão felizes coincidências

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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