capa A Bi?blia FINAL:Layout 1Mas o que é que faz a Bíblia ser o que ela é? O fato de, tanto quanto essa presença humana, sentirmos a manifestação, aqui e ali, de um sopro que é o que, à falta de melhor termo, chamamos de inspiração (etimologicamente, “a entrada do ar nos pulmões”). O narrador bíblico está lá – uns com mais talento que outros – cumprindo a sua vocação; e, de repente, é como se o chão lhe fugisse debaixo dos pés e ele começasse a voar.

 

[Horta, Luiz Paulo. A Bíblia: um diário de leitura. – Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 12.]

Tenho lido um livro apaixonante: “A Bíblia: um diário de leitura”. Devo sua indicação a uma grande amiga, Dulce Freire, com quem partilho a paixão pela leitura. O autor é novo para mim, Luiz Carlos Horta. Uma pena que somente agora eu lhe tenha sido apresentado. Uma semana depois de Dulce me ter falado do seu livro, exatamente na manhã do meu aniversário, 3 de agosto, fui surpreendido com a notícia de seu falecimento. Ele, que já era imortal por pertencer à Academia Brasileira de Letras, ganhava naquela manhã a imortalidade maior, ao ser chamado para partilhar o grande banquete na morada do Pai, esse Pai a Quem ele tanto amou em vida e do qual falou muitas vezes.

“A Bíblia: um diário de leitura” é fruto, como informa o próprio autor na Apresentação, de um grupo de leitura da Bíblia que se reunia em Botafogo, no Rio de Janeiro, em meados dos anos 90. Ao longo dos 37 capítulos que compõem o livro, Luiz Paulo Horta comenta com leveza e sensibilidade diversos livros e fatos do Antigo e do Novo Testamento.

Escrevendo sobre o Eclesiástico, um dos mais belos livros do Antigo Testamento, afirma:  “O Eclesiástico tem um tom filosófico, mas não se pode dizer que seja filosofia no sentido corrente; porque a primeira coisa que procura deixar clara é que a sabedoria vem de Deus, não é obra humana” (p. 171).

No capítulo sobre Maria, ao se referir à árvore da ciência do bem e do mal, presente no Gênesis, indaga: “A árvore da ciência do bem e do mal – o que isso pode significar?”, respondendo, a seguir: “Entre outras coisas, a multiplicidade, o mundo como nós o vemos prosaicamente, onde o bem e o mal andam misturados – e misturados de tal forma que uma confusa tristeza prejudica, ou impede, a visão do bem” (p. 196). Achei muito curiosa a expressão “confusa tristeza”, à qual credita o autor o impedimento à visão do bem.

Devido ao meu interesse especial pelo controvertido Cântico dos Cânticos, gostei imensamente da abordagem dispensada a este livro, no capítulo intitulado “Erotismo na Bíblia”. Depois de comentar algumas diferentes abordagens a que o texto tem sido submetido, propõe uma leitura que não separe tanto o sensível do suprassensível:

“Nessa visão mais ´moderna`”, – escreve o autor – “não precisaríamos esvaziar o Cântico dos Cânticos da sua carga erótica. O erotismo não faz parte da nossa natureza? O ruim, como acontece agora, é congelar o erotismo num determinado plano. Nesse fechamento, ele se torna suicida – o sexo matando ou sufocando o amor” (p. 142). E completa: “Mas se preservarmos a possibilidade da transposição, as portas se abrem; o físico serve de maravilhosa introdução a um outro plano; a ligação física dos amantes remete ao encontro das almas” (p. 142).

Luiz Paulo Horta foi jornalista, escritor. Tinha três grandes paixões: o jornalismo, a música e a religião. Presidia o Centro Dom Vital, núcleo de pensamento católico. Dentre outros livros, publicou “Música clássica em CD: Guia para uma discoteca básica” (1997) e “A música das esferas: Crônicas dos anos 90” (1999).

No inspirado discurso proferido por ocasião de sua posse na Academia Brasileira de Letras, em novembro de 2008, traçou um paralelo entre a obra Machado de Assis, primeiro ocupante da cadeira 23, que ele passava a ocupar, e o Eclesiastes.   Após afirmar que “Machado foi um leitor assíduo do Eclesiastes, que ocupa, na Bíblia, o lugar reservado à chamada literatura sapiencial”, cita diversos trechos do aludido livro, indagando, a seguir: “Com um pouco de esforço, não poderiam ser passagens machadianas? Ou essa impressão vem do fato de que Machado de fato impregnou-se dessa sabedoria antiga?” (http://www.academia.org.br/abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=8480&sid=616)

Luiz Paulo Horta tem uma sentença que tomei como divisa e da qual procuro lembrar cada vez que o desânimo se interpõe entre mim e o meu desejo de escrever : “Escrever é um ato de amor”.

 

 

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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