A Bíblia é indispensável no discipulado pessoal de cada membro da igreja e no ministério de pregação do pastor. A fim de exercerem seu papel, contudo, as Escrituras precisam ser compreendidas, daí a importância do Comentário bíblico africano. Nos últimos tempos, a igreja na África tem testemunhado o avanço de estudos bíblicos sérios no âmbito acadêmico. Trata-se de um ressurgimento auspicioso no continente que no passado nos deu intérpretes como Agostinho e Atanásio. O Comentário bíblico africano é um marco editorial e desejo parabenizar os colaboradores e editores pela elaboração de um comentário fundamentado nas Escrituras, que as interpreta do ponto de vista africano e aborda questões controversas de modo equilibrado. Tenho a intenção de usá-lo para obter maior entendimento da Palavra de Deus sob a ótica africana. Aliás, espero que conquiste leitores do mundo inteiro para que possamos compreender melhor as dimensões plenas do amor de Cristo (Ef 3:18).

Dr. John Stott   

[Prefácio, p. vii. Em: Adeyemo, Tokunboh (editor geral). Comentário bíblico africano. São Paulo: Mundo Cristão, 2010.]

Quando soube da publicação do Comentário bíblico africano: um comentário em um volume escrito por 70 eruditos africanos, tratei logo de adquiri-lo. A Bíblia é uma das minhas paixões, embora eu não possa afirmar que a conheça em profundidade. Quando li o título do volume, imediatamente fiz a inevitável associação com a conhecida Septuaginta, ou Versão dos Setenta, a tradução da Bíblia hebraica para o grego que, conforme a tradição, teria sido feita por setenta e dois rabinos.

No caso do Comentário bíblico africano, não se trata exatamente de uma tradução da Bíblia. A volumosa obra, que na edição em língua portuguesa ficou com 1627 páginas, é, como o próprio título sugere, um comentário a cada dos livros do Antigo e do Novo Testamento. Os comentários foram escritos por eruditos africanos de diferentes igrejas, tendo a uni-los dois aspectos: o fato de terem nascido no continente africano e de pertencerem a uma denominação cristã. Nesse caso, as igrejas a que pertencem são, todas elas, evangélicas.

Além dos comentários dos livros bíblicos, a obra traz uma série de artigos abordando temas como A Bíblia e a poligamia, A igreja e o Estado, A tradução da Bíblia na África, Funerais e ritos de enterro, Culto nos lares, Democracia, Feitiçaria, Ritos de iniciação, O cristão e o meio ambiente, Sincretismo, Sonhos, dentre outros. Esses artigos conferem à obra um valor especial, pois é principalmente neles onde melhor transparece o objetivo que teve em mira seus editores, ou seja, adequar a interpretação do texto bíblico às peculiaridades da cultura africana. Para que se tenha uma ideia de como é realizado esse propósito, cito abaixo dois excertos de artigos em que é traçado um paralelo entre o texto bíblico e a cultura africana.

Ao escrever sobre a oração, o queniano Bonifes E. Adoyo, Mestre em divindade pela Nairobi Evangelical Graduate School of Theology (Quênia), bispo da Nairobi Pentecostal Church, afirma:

Deus delegou o domínio da terra aos seres humanos (Sl 8:4-8). Confiou-lhes responsabilidade e autoridade, mantidas com linhas de confiança (Mt 12:36-37; Rm 2:6). A governança por delegação assegura iniciativa individual e estimula a imaginação, a criatividade e o desenvolvimento. No curso da realização dessas responsabilidades dadas por Deus, contudo, achamos necessário consultar-nos com ele para nos assegurar de que estamos agindo de acordo com a sua vontade. O apóstolo Paulo descreve cuidadosamente nosso papel dizendo que “de Deus somos cooperadores” (1 Cor 3:9).

A seguir, estabelece o paralelo com a cultura de seu povo:

A situação é semelhante à da sociedade africana, na qual os idosos não tinham de tomar decisões sobre assuntos corriqueiros, mas seus conselhos eram valiosos diante de dificuldades, ou quando decisões sérias tinham de ser tomadas (p. 1213).

Em outro artigo, o congolês Kazuli Kossé, Mestre em teologia pela Faculté de Théologie Evangélique de Bangui [FATEB], atualmente professor de missiologia na mesma Faculdade, ao tratar do tema A unidade dos crentes, escreve:

No AT, a unidade do povo de Israel estava baseada no temor de Deus e nos laços familiares. Todavia, a despeito de ter um mesmo pai, Abraão, Israel estava dividido em tribos e, mais tarde, dividiu-se em dois reinos. Apesar de terem a lei de Moisés e de serem constantemente advertidos pelos profetas, o povo de Israel não foi capaz de obedecer a Deus nem de viver como ele desejava. Por essa razão, podemos dizer que eles não alcançaram a verdadeira unidade.

A seguir, compara a situação de Israel, conforme narra a Bíblia, com a do povo africano:

Nas nações e aldeias da África, a unidade depende em grande parte dos laços familiares, do uso de um idioma comum ou de um fato de habitar uma mesma região geográfica. Esse tipo de unidade é vulnerável, porque qualquer um que seja proveniente de outra região ou que não fale o idioma é considerado um intruso, até mesmo um inimigo. Assim, não há unidade envolvendo as várias regiões da nação.

Logo abaixo, conclui o raciocínio, defendendo o ponto de vista de que a almejada unidade pode ser obtida mediante a adoção de uma mesma fé, no caso, a fé em Jesus Cristo:

Em Israel, como na África, a unidade era apenas parcial, limitada a uma tribo ou a uma comunidade fechada. No NT, porém, encontramos uma dimensão universal e ilimitada para a unidade dos crentes. Essa unidade não conhece limites geográficos, administrativos ou universais. É baseada em Jesus. Por sua morte e ressurreição, Cristo abriu caminho para o estabelecimento de novas alianças entre todos os povos, que antes viviam longe da graça divina e eram inimigos de Deus (Ef 2:12-13). Pela fé em Jesus, os crentes agora fazem parte de uma nova nação, reconciliada com Deus e capaz de viver em genuína comunhão – uma unidade visível (p. 1320).

O Comentário bíblico africano é um livro que tenho lido com interesse e sempre renovado prazer, pois me tem proporcionado a oportunidade tanto de conhecer melhor a cultura dos povos africanos, quanto a de obter informações sobre como é feita a evangelização neste continente de costumes e tradições tão peculiares e, por isso mesmo, únicas na história da humanidade.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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