A psicanálise é uma disciplina singular, em que se combinam um novo tipo de pesquisa das neuroses e um método de tratamento com base nos resultados daquele. Desde já enfatizo que ela não é fruto da especulação, mas da experiência, e, portanto, é inacabada enquanto teoria. Mediante suas próprias inquirições, cada qual pode se persuadir da correção ou incorreção das teses nela presentes, e contribuir para seu desenvolvimento.

Sigmund Freud

[Freud, Sigmund.  Princípios básicos da psicanálise. In: Freud, Sigmund. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia: (“O caso Schreber”): artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913; tradução e notas Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das letras, 2010, p. 269.]

Em uma comunicação escrita para um congresso médico realizado em 1911, e que seria publicada nas atas do referido congresso somente dois anos mais tarde, em 1913, Freud traça um esboço resumido da teoria e técnica psicanalíticas. Na ocasião, era a psicanálise tratada ainda como novidade, e as resistências que enfrentava o incipiente saber nos meios médicos e acadêmicos eram muito fortes.

Passados cem anos desde a publicação do texto, indagamo-nos hoje o que mudou com relação à aceitação da psicanálise. Na verdade, por mais que muitos tentem denegri-la tanto enquanto teoria quanto como método de tratamento das neuroses, não resta dúvida de que ela se impôs como um saber que mudou radicalmente a forma de ver o ser humano. Classificado com um dos três mestres da suspeita, conforme a expressão cunhada pelo filósofo francês Paul Ricouer, Freud provocou uma verdadeira revolução na concepção que, até então, o homem tinha de si mesmo.

Depois de Freud, tornou-se impossível sustentar certas ilusões ao abrigo das quais a humanidade vivera ao longo de muitos séculos. A par disso, pode-se afirmar que o homem ganhou uma consciência maior de si mesmo, ciente das ciladas que o seu psiquismo lhe prega a todo momento. Uma das consequências foi tornar mais difícil alimentar a autocomplacência e o autoengano.

Por ser uma disciplina em que teoria e prática estão estritamente imbricadas uma na outra, a psicanálise permanece ainda um saber em construção. A propósito, salientem-se os acréscimos que foram e continuam sendo feitos pelos muitos estudiosos e praticantes desse belo e complexo ofício.

Os benefícios advindos do legado deixado por Freud são inegáveis. Entretanto, apesar de todos os ganhos que a psicanálise trouxe à humanidade, ela permanece sendo ainda alvo de muitos e veementes ataques, tornando atual a admoestação transcrita abaixo, escrita por Freud há um século:

“Nos círculos médicos, especialmente nos psiquiátricos, existe a tendência de se opor às teorias da psicanálise sem um verdadeiro estudo ou aplicação prática delas. Isto se deve não apenas à espantosa novidade dessas teorias e ao contraste que elas apresentam às concepções até agora mantidas pelos psiquiatras, mas também ao fato de os pressupostos e a técnica da psicanálise serem muito mais ligadas ao campo da psicologia do que ao da medicina. Não se pode contestar, porém, que os ensinamentos puramente médicos e não psicológicos contribuíram muito pouco, até aqui, para um entendimento da vida psíquica. O progresso da psicanálise é também retardado pelo medo que sente o observador médio de enxergar-se em seu próprio espelho. Os homens de ciência tendem a confrontar resistências emocionais com argumentos, convencendo-se, assim, do que desejam ser convencidos! Quem não quiser ignorar uma verdade fará bem em desconfiar de suas antipatias, e analisar primeiramente a si mesmo, se pretende submeter ao exame crítico a teoria da psicanálise” (p. 274).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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