Cabe perguntar apenas se o exercício da psicanálise não pressupõe um treino médico, que o educador e o pastor necessariamente não têm, ou se outros fatores não contrariam a intenção de pôr a técnica psicanalítica em outras mãos que não as dos médicos. Confesso que não vejo tais obstáculos. O exercício da psicanálise requer muito mais preparação psicológica e livre discernimento humano do que instrução médica. A maioria dos médicos não se acha equipada para o exercício da psicanálise, e fracassou inteiramente ao avaliar esse método terapêutico. O educador e o pastor são obrigados, pelas exigências de suas profissões, a ter os mesmos cuidados, considerações e discrições que o médico está habituado a manter, e o fato de normalmente lidarem com jovens talvez os torne mais aptos a compreender sua vida psíquica. Em ambos os casos, porém, a garantia de uma aplicação inofensiva do método analítico só pode ser dada pela personalidade daquele que analisa.

[Freud, Sigmund. Prefácio a “O método psicanalítico”, de Oskar Pfister. In: Freud, Sigmund. Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia: (“O caso Schreber”): artigos sobre técnica e outros textos (1911-1913); tradução e notas Paulo César de Souza. – São Paulo: Companhia das letras, 2010, p. 342.]

Sempre achei muito curiosa a relação de Freud com Oskar Pfister (1873-1956), pastor e pedagogo de Zurique. De fato, muito mais que curiosa acho fascinante o fato de Freud, que definia a si mesmo como um “herético impertinente”, ter mantido ao longo de toda a sua vida uma relação tão estreita com um homem a quem ele se dirigia nas muitas cartas que trocaram ao longo de décadas como “Caro grande homem de Deus”. Não deixa de admirar também o fato de um pastor ter encontrado na psicanálise um instrumento eficaz para sua prática como orientador espiritual.

Em 1913 Oskar Pfister publicou um livro intitulado “O método psicanalítico”, para o qual Freud escreveu um prefácio. Nesse prefácio, o criador da psicanálise toca na questão da análise leiga, tema que ainda faria rolar muita tinta ao longo das décadas seguintes, convertendo-se em motivo de acalorados debates nos meios psicanalíticos. Não é essa, porém , a questão me interessa explorar neste momento.

Na iminência de iniciar uma formação em psicanálise e sabedor da perspectiva assumida por Freud em relação à religião, a questão me toca de forma muito particular. De fato, a princípio, pelo menos, eu não gostaria de pensar que o estudo e a prática da psicanálise terão como desfecho extirpar de mim o elemento religioso, tão entranhado que ele se encontra em meu ser. Eu não gostaria de abrir mão dessa dimensão da existência, para mim tão fundamental.

Reportando-me, pois, ao texto aqui citado, nele Freud não desce a maiores detalhes nem se aprofunda na questão.  Talvez por se tratar de um prefácio, a natureza do escrito não tenha possibilitado um maior aprofundamento. Mesmo assim, a questão não apenas da possibilidade do exercício da psicanálise por educadores e pastores, mas, inclusive, a utilidade e o valor que ela possa ter se utilizada para fins educativos, está posta no texto.

Na verdade, como o livro de Pfister destinava-se a educadores, foi esta a perspectiva adotada por Freud na abordagem da questão: o uso da psicanálise na educação.  O pastor suíço, porém, ampliou a proposta, defendendo a viabilidade do uso dos pressupostos psicanalíticos para fins de orientação espiritual.

Conforme afirma Jean-Michel Quinodoz no livro “Ler Freud: guia de leitura da obra de S. Freud”, Pfister “sustentava fundamentalmente que a cura da alma poderia ser enriquecida pelas ideias de Freud e que o papel de um pastor esclarecido era conduzir o paciente a superar sua neurose para que pudesse reconhecer o valor da fé cristã” (Quinodoz, Jean-Michel. Freud e o pastor Pfister. In: Quinodoz, Jean-Michel. Ler Freud: guia de leitura da obra de S. Freud. Tradução Fátima Murad. – Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 250.)

Certamente não são poucos os psicanalistas que, ao ler tal afirmação, torcerão o nariz e até, quem sabe, considerarão um disparate tentar aliar a psicanálise à prática religiosa. Não tive ainda oportunidade de conhecer melhor as ideias de Pfister; isso, por enquanto, permanece como um projeto para o futuro. De qualquer maneira, considero muito simpática sua proposta e não hesitaria em afirmar que este é um bom tema para investigação de um neófito que, como eu, está se dispondo a uma iniciação ao fascinante e controvertido universo da psicanálise através de uma formação sistemática, inclusive submetendo-se a uma análise didática.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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