Cristal solar

Cristal solar

Obedecendo ao impulso de minha natureza, sentia uma repugnância fora do comum; mas eu estava inteiramente disposta a tudo fazer e a me conformar em tudo ao divino querer. Com tudo isso, tive de travar muitos combates…

Santa Verônica Giuliani

[Sgarbossa, Mario. Os santos e os beatos da Igreja do Ocidente e do Oriente: com uma antologia de escritos espirituais. Tradução Armando Braio Ara. – São Paulo: Paulinas, 2003, p. 389.]

Existe, certamente, um plano divino para cada ser humano. Não, não estamos aqui por acaso. Nesse sentido, pode-se dizer que há uma vontade maior com a qual a nossa vontade pessoal deve, em algum momento, coincidir. Creio que o objetivo maior da vida de cada pessoa é descobrir essa vontade e realizá-la. Este tem sido o meu objetivo ao longo dos últimos dezoito anos, desde que, imbuído desse propósito, realizei uma peregrinação à Índia e ao Nepal. Faria, nos anos seguintes, duas outras importantes peregrinações. A primeira delas, ao Tibete e, novamente, ao Nepal. A segunda, à Palestina, Fátima, Assis e Roma.

Este ano minha busca atinge a maioridade. É o momento da consolidação de toda essa busca, em que posso olhar para trás e avaliar toda essa longa noite escura atravessada pela minha alma. Noite tenebrosa mesmo. A mais longa e extenuante travessia que alguém possa realizar. Eu a fiz, corajosamente a fiz, e não voltei de mãos vazias. A exemplo da citação posta em epígrafe a este texto, posso dizer com santa Verônica Giuliani que em muitas ocasiões senti grande repugnância por ter que confrontar muita coisa que minha mente racional se recusava obstinadamente a aceitar. Também em conexão com o que ela afirma, tive que travar muitos, muitíssimos combates. Em diversas ocasiões saí exausto e estropiado. Mas nunca me recusei a combater. Não recusei o chamado da noite. Tive sempre em mira um propósito maior, e foi isso que me sustentou ao longo da noite. Eu queria saber se é verdade, EU TINHA QUE SABER SE É VERDADE. Então, atendi ao chamado.

Houve ocasiões em que me senti tomado por um medo avassalador. O medo maior era da desagregação mental. Tantos se perderam nesta travessia. O temor de estar apostando numa ilusão também assomava a cada instante no meu horizonte de possibilidades. Raramente partilhei com amigos ou familiares os temores e tremores que senti. Apesar disso, eu não estava só. Naza, sempre muito próxima e sensível ao que sinto, percebeu em diversas ocasiões a angústia que eu experimentava. Com a discrição que lhe é peculiar, amparou-me com palavras e gestos, sem jamais ser invasiva e respeitando sempre os meus momentos. Indira também esteve sempre presente, em especial nas ocasiões em que compartilhei com ela algumas dúvidas e indecisões quanto ao rumo que deveria dar aos meus textos. Sua sugestões foram sempre ponderadas e sensatas, incentivando-me a manter o foco inicialmente delimitado, ou seja, a espiritualidade.

Num outro plano, pude contar sempre com a companhia dos Mestres, os que muito antes de mim e de forma bem mais radical, fizeram a travessia e saíram vitoriosos. Por isso mesmo, puderam falar dela com precisão e propriedade, deixando registradas suas impressões e experiências para que outros buscadores, como eu, pudessem delas se beneficiar. Sou-lhes imensamente grato.

Dentre os Mestres com quem sempre tenho contado, destaco aqueles que tomei como padrinhos. É, resolvi fazer uma metáfora. Assim como tenho padrinhos de batismo, madrinha de apresentar e padrinho de crisma, decidi que escolheria, para a minha iniciação espiritual, os meus padrinhos, mesmo sem a certeza de que teria a anuência deles, ou seja, de que eles me aceitariam como seu afilhado. Mesmo assim, ousadamente, os tomei por padrinhos. Para padrinhos de batismo, são Francisco de Assis e santa Teresa d´Ávila; para madrinha de apresentar, santa Clara; e, para padrinho de crisma, santo Antônio Maria Claret.

Passei por uma preparação para essas três iniciações. Para tanto, contei também com três inestimáveis auxílios. Para o batismo, preparou-me Santo Agostinho, instruindo-me por intermédio de seus escritos. Para a primeira comunhão, tomei como catequista o evangelista são João e, para o crisma, o irmão deste, o apóstolo são Tiago.

Para concluir o processo de iniciação, restava ser apresentado no Templo do Divino Pai Eterno. Para esse importantíssimo evento, a coroação da minha Iniciação Cristã, confiei-me a Dom Bosco e Dom Hélder Câmara. O que mais poderia eu desejar do que o inestimável privilégio de ser introduzido no Templo em companhia de tão abalizados mestres?

Nenhum dos mestres mencionados me negou o seu auxílio. Nos momentos mais difíceis, um ou outro esteve sempre presente. Seguiram comigo orientando-me por intermédio dos seus escritos. As sincronicidades experimentadas ao longo do trajeto serviram-me como confirmação das orientações que eu encontrava nos escritos de um ou outro deles cada vez que, meio perdido, buscava palavras que me esclarecessem quanto ao rumo ou a decisão a tomar. Posso assegurar que a sua orientação segura nunca me faltou, e sempre que as adotei o resultado foi eficaz e, não raras vezes, surpreendente. Sua bênção, meus padrinhos, para esse miserável que tão ousadamente se aproximou de vós em busca de auxílio.

Registrar tudo por escrito tem sido de grande valia. A esses registros dei o nome de Diário do Caminho. Serviu-me como fonte de inspiração exatamente os diários de santa Verônica Giuliani. Foi depois que tive acesso a um exemplar de seus diários que me senti também impelido a escrever o meu. Foi uma opção feliz, pois sempre que necessário retorno às minhas anotações, cotejo fatos, comparo impressões, estabeleço conexões entre eventos aparentemente sem relação entre si. E concluo sempre pelo sentido. As peças acabam se encaixando como se formassem um grande quebra-cabeças, que deságua num sentido coerente e estruturado.

Permeando toda essa trajetória, a figura onipresente da Virgem Maria. Nunca pude prescindir de sua ajuda. Ela tem sido um farol. Minha sorte foi um dia ter caído em minhas mãos um texto de São Bernardo, um dos maiores devotos de Nossa Senhora, no qual ele afirmava: “Nunca se ouviu dizer que um devoto de Maria se perdesse”. Pronto!, foi o suficiente para que eu me confiasse a ela com uma fé sem medidas. Houve ocasiões em que me vi impelido a rezar literalmente segurando na mão de uma imagem de Nossa Senhora – uma imagem que me expressa o que de melhor e mais belo se possa imaginar em termos de meiguice, doçura, bondade e compaixão. Uma imagem de mãe com todas as letras, a Grande Mãe de todos nós que a ela nos confiamos sem meias-medidas. A minha confiança não foi em vão. Ela tem sempre passado na frente, abrindo portas e caminhos, e desatando os nós que, sem o seu inestimável amparo, eu não teria conseguido desatar. Sua bênção, Santa Mãe, para esta frágil e tola criatura que, sem a sua proteção, não teria chegado a lugar nenhum.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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