De quantas amarguras muitas vezes me livrastes, ó bom Jesus, vindo a mim! Quantas vezes, depois de atormentado pranto, depois de inumeráveis gemidos e soluços, curastes minha chagada consciência com o unguento de vossa misericórdia e a ungistes com óleo de alegria! Quantas vezes, no início da oração, me vi quase desesperado e, depois, dela saí exultante, audaciosamente seguro do perdão! Os que, como eu, são atribulados, estes sabem ser o Senhor Jesus o verdadeiro médico que cura os corações contritos… Quem tal experiência não fez, creia naquele mesmo que disse: ungiu-me o Espírito do Senhor e me enviou a evangelizar os pobres e curar os contritos de coração. Se ainda duvidar, aproxime-se com segurança, faça experiência e, por si mesmo, aprenderá o que significa: misericórdia quero, e não sacrifício.

São Bernardo. No Cântico dos Cânticos, 32,3

[Citado em: Gabriel de Sta. Mª Madalena, O.C.D. Intimidade Divina. – 5ª. ed. – Revisão: Silvana Cobucci e Paulo César de Oliveira. São Paulo: Loyola, 2010, p. 619.]

Ao afirmar o Catolicismo como a minha religião, tenho, necessariamente, que reconhecer Cristo como o Filho de Deus, enviado pelo Pai para a redenção dos pecadores. Partindo do pressuposto do pecado original, entenda-se aqui por pecadores todos os homens e mulheres que povoam a face da Terra. Permitir que o próprio filho passasse pelo que passou Jesus Cristo, configura um ato de tamanha grandeza e amor que, só mesmo Aquele que é a misericórdia por excelência poderia proporcionar aos viventes.

A misericórdia de Deus, expressa na encarnação do Verbo. Inefável mistério que tem ocupado muito tempo nas minhas reflexões. Considero-me tão aquém do direito a essa misericórdia, que se torna difícil para mim admiti-la, reconhecê-la como operando na minha vida. Eis, então, que me deparo com um texto como esse que citei aqui em epígrafe, emanado da pena de uma alma iluminada como São Bernardo. Ao lê-lo, meu coração readquire um pouco uma quietude que, embora passageira, permite que não desista do Caminho.

São Bernardo – santo, aliás, por quem tenho uma grande devoção, motivado por sua própria devoção a Nossa Senhora, sobre quem escreveu coisas belíssimas -, cita o episódio narrado em Mateus 9, 10-13:

Aconteceu que estando ele à mesa em casa, vieram muitos publicanos e pecadores e se assentaram à mesa com Jesus e seus discípulos. Os fariseus, vendo isso, perguntaram aos discípulos: “Por que come o vosso Mestre com os publicanos e pecadores?” Ele, ao ouvir o que diziam, respondeu: “Não são os que têm saúde que precisam de médico, e sim os doentes. Ide, pois, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não o sacrifício. Com efeito, eu não vim chamar justos, mas pecadores.

Palavras especialmente alentadoras, estas, proferidas pelo próprio Cristo. Elas fazem eco particularmente a pessoas que, como eu, por se julgarem incapazes de cumprir as exigências  cristãs, se sentem, muitas vezes, tentados a desistir do Caminho.  Para que isso não aconteça, digo, desistir, a experiência da misericórdia é fundamental.

Escrevendo agora este texto, fiquei maravilhado quando, ao pegar a minha Bíblia de Jerusalém para fazer a citação de Mateus, li o que está escrito logo acima do trecho procurado por mim:

Chamado de MateusIndo adiante, viu Jesus um homem chamado Mateus, sentado na coletoria de impostos, e disse-lhe: “Segue-me”. Este, levantando-se, o seguiu (Mt 9,9).

Quando me acontecem fatos como esse, na verdade coisinhas muito simples, não posso deixar de me maravilhar com a bondade e delicadeza de Deus, que nos pormenores de fatos acontecidos no dia a dia, nos dá o Divino Espírito Santo, que, com seu sopro suave, vai nos ajudando com discretos sinais a não se desviar do Caminho.

Não precisamos esperar a perfeição para seguir a Cristo. Foi ele próprio quem afirmou que veio para os doentes e imperfeitos, e não para os que julgam já ter atingido o cume da perfeição humana. Enquanto viventes, jamais seremos perfeitos. A almejada perfeição será sempre apenas um leve e discreto bafejo. Isso me leva à conclusão de que temos que seguir O Caminho como Deus quer que O sigamos, e não como nós gostaríamos ou supomos que deveríamos seguí-lO.

Ou seja: temos de nos apresentar ao Mestre tal qual somos, e apenas dizer com muita humildade e contrição: “Mestre, eis-me aqui disposto a seguir-te. Dispõe das minhas imperfeições como melhor te aprouver”.

Quanto ao mais, deixemos que disso ele próprio se encarregará. Isso se chama Misericórdia de Deus.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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