Sempre me foi complicado encarar a morte. Refiro-me à morte total, plena. A morte fisiológica não é um problema, mas a morte essencial, essa é cruel e insuportável. Talvez por isso essa mania de criar, de produzir e publicar na esperança de superar a morte visceral, transpor a barreira da existência finita e, de alguma forma, superar o esquecimento, como se diz na máxima: as palavras voam, mas não as escritas!

Raymundo Netto

[Raymundo Netto. Crônicas absurdas de segunda. Ilustrações Valber Benevides. – Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2015; “Até um dia” a Eduardo campos, p. 57].

Sábado passado, por volta das três horas da tarde, vinha caminhando absorto pela Rua Castro Alves quando, de repente, já quase na esquina com a Monsenhor Bruno, sinto uma brisa fria soprar de leve, seguida de um toque suave no meu ombro esquerdo. Antes que me recompusesse do susto pude ouvir a sibilante frase:

– Meu indigitado amigo, há quanto tempo!

Por mais surpreendente que fosse a cena, aquela expressão não poderia ser pronunciada por nenhuma outra criatura neste mundo de meu Deus. Não deu tempo nem de me recompor do susto para vislumbrar ali, ao meu lado, em carne e osso, o cronista Airton Monte.

Antes que eu dissesse qualquer coisa, ele emendou:

– Vieste aqui matar a saudade dos velhos tempos das tardes de domingo em que nos encontrávamos no Bom, não foi? Ah, meu amigo, como sinto saudades daquelas tardes de muita conversa, cerveja e boa música. Tens visto o poeta?

Eu estava atônito, sem saber o que falar. Queria dizer algo, mas a voz não saía. Para completar a surpresa, vi que o cronista trazia em uma das mãos um livro em cuja capa pude ler o título, impresso em letras góticas: “Confederação dos mandacarus”.

Neste momento, chegamos na esquina da Monsenhor Bruno. Airton tirou a mão do meu ombro e falou:

– Meu indigitado amigo, tenho que ir. O Audifax me espera no Beco do Segundo para uma reunião da Academia do Beco. Dia destes aparece por lá, combinado?

Antes que eu desse um suspiro a aparição se desfez. Digo aparição porque aquilo só podia ser coisa de outro mundo. Aliás, tem sido assim desde que comecei a ler um tal Crônicas absurdas de segunda. Foi só começar a leitura desse livro para que coisas esquisitas, digamos, absurdas, começassem a me ocorrer, não sendo a mais absurda delas o inusitado encontro de sábado.

Conforme se pode ler na contracapa, “Crônicas absurdas de segunda é, em sua maioria, uma seleção de textos publicados, entre 2007 e 2010, no caderno ´Vida & Arte` do jornal O POVO. Neles, o autor visita e apresenta a cidade, a reconhece e a provoca por meio da fala (e dos sentimentos) de seus escritores, principalmente os cronistas, contemporâneos ou não, que encontra em bancos de praça, nos ônibus, em parques, nas casas mutiladas, cemitérios ou em meio a desastres e hecatombes de proporções aparentemente absurdas”.

O autor, Raymundo Netto, é uma figura já bem conhecida no meio cultural fortalezense, cidade que o viu nascer no dia 29 de junho de 1967. Estreou na literatura em 2005 com o romance Um conto no passado: cadeiras na calçada, ganhador do I Edital de Incentivo às Artes da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult). Desde 2007 publica crônicas no caderno Vida & Arte do jornal O POVO. Em 2007, a coletânea de contos Os acangapebas foi contemplada pelo II Edital de Incentivo à Cultura da Funcet (Atual Secretaria de Cultura de Fortaleza). Mais tarde, em 2011, a obra receberia o Prêmio Osmundo Pontes de Literatura da Academia Cearense de Letras, sendo lançado em 30 de maio de 2012, em solenidade na Câmara Municipal de Fortaleza, quando o autor recebeu a Medalha Boticário Ferreira em reconhecimento pelos serviços prestados à cultura na cidade de Fortaleza.  É também autor dos infanto-juvenis: A bola da vez (2008), A casa de todos e de ninguém (2009), Os tributos e a cidade (2011), A galera se liga em cidadania! (2014) e Boto cinza cor de chuva (2014), todos pelas Edições Demócrito Rocha (EDR).

A leitura de Crônicas absurdas de segunda me fez experimentar momentos de puro deleite, em que pude, ciceroneado pelo Raymundo Netto, desfrutar da companhia e, em certas ocasiões, da intimidade de diversos escritores cearenses, vivos ou já falecidos. O livro oferece uma oportunidade, que eu diria rara, de contato com fatos e aspectos pitorescos da cidade de Fortaleza, além de trazer a lume muitos autores esquecidos ou, em alguns casos, pouco conhecidos ou até desconhecidos. Só por isso, já valeria o tempo despendido na leitura.  Entretanto, além do aspecto informativo da obra, o leitor terá em mãos pouco mais de duzentas páginas de puro prazer, proporcionado pela beleza e leveza das crônicas, sempre temperadas por maravilhosos toques de humor, característicos do autor.

About the Author

Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

View All Articles