É preciso recuperar a ideia de que existem alternativas, é preciso demonstrar que o pensamento crítico eurocêntrico se esgotou na sua capacidade de formular caminhos para lutas contra a dominação e a opressão. É momento de pôr fim ao império cognitivo, é momento de realizarmos um giro decolonial.

Francisco Uribam Xavier de Holanda

[Holanda, Francisco Uribam Xavier de. Crise Civilizacional e Pensamento Decolonial: Puxando Conversa em Tempos de Pndaemia. – Belo Horizonte: Editora Dialética, 2021, p. 52]

Deliberadamente iniciei a leitura deste livro no dia 7 de setembro. Gosto de atribuir um valor simbólico aos fatos e acontecimentos da minha vida, e essa decisão tinha um sentido eivado de muito simbolismo, tendo em vista as graves circunstâncias em que se previa que seria celebrada a data da Independência do Brasil neste 7 de setembro de 2021. Foi ele, também, o primeiro livro adquirido por mim que faz referências à pandemia de COVID-19, inclusive explicitada no próprio título. Isso lhe confere um duplo valor simbólico. Foi, digamos, o primeiro livro gestado e vindo a lume nesse momento pandêmico a ser incluído na minha biblioteca.

Quanto ao interesse em adquiri-lo – providência adotada tão logo soube da sua publicação -, poderia elencar dois motivos. Primeiro, minha admiração pelo autor, a quem tive oportunidade de ouvir por mais de uma vez em palestras que muito me agradaram, seja pelo conteúdo, seja por sua forma de expor o assunto proposto. Segundo, pelo título, que se desdobra em dois aspectos. O primeiro, a expressão “pensamento deocolonial”, para mim, até então, desconhecida. O segundo aspecto diz respeito a uma expressão também usada no título, “puxando conversa”, que me fez rememorar minhas viagens a Massapê, ocasião em que eu, meu pai, já falecido, e minha mãe nos sentávamos na calçada pra puxar conversa, depois do jantar.

Talvez alguns dos assuntos mais interessantes aflorem nessas ocasiões, quando se puxa conversa em família ou entre amigos. Segundo informa o prof. Uribam na Introdução, foi exatamente de uma situação como essa, inspirada nas conversas puxadas por Totonho, um pescador da Barra da Sucatinga, que lhe veio o mote para o livro. Paradoxalmente, num momento em que, devido ao fantasma da pandemia, ainda estamos privados da liberdade de pôr as cadeiras na calçada pra puxar conversa, somos convidados a isso. Talvez, quem sabe, a pandemia com suas lives – referidas pelo autor no livro -, tenha inaugurado uma nova forma de puxar conversa.

Todas as dificuldades vividas pela pandemia tornaram o momento propício para reflexões sobre assuntos de grande relevância, como, por exemplo, a economia. É muito oportuna a reflexão proposta pelo puxador de conversa (em se tratando dessa obra, prefiro usar essa expressão ou a palavra conversador para me referir ao autor) logo no início do segundo capítulo, ao afirmar: “A crise da COVID-19 nos cria uma oportunidade para que possamos fazer com que a sociedade resgate o sentido original da economia, a saber: de ser um conhecimento voltado para dar resposta à escassez de bens materiais necessários à manutenção coletiva da vida. Mesmo no mundo ocidental encontramos exemplos e reflexões que nos ajudam a entender que a origem da economia tem como finalidade os imperativos da vida e não a acumulação de riquezas” (p. 30).

Está posto aí um excelente assunto para puxar muita conversa: uma concepção de economia que tenha por foco não o mercado e a produção de bens com vistas à acumulação e ao lucro, mas a manutenção da vida.

Continuando a conversa puxada pela discussão sobre o papel que caberia ser desempenhado pela economia, prossegue o conversador: “Se adotarmos um modelo de economia voltada para o bem viver e para uma vida plena, para o uso comunitário ou a serviço comum da humanidade, a produção científica e tecnológica existente no mundo hoje já permitiria, desprivatizadas, a melhoria de vida das pessoas e da natureza. Já seria possível diminuir, em muito, a pobreza e a necessidade média do tempo de trabalho diário dedicado à produção para o uso coletivo, e com isso teríamos mais tempo livre para viver e aperfeiçoar as nossas relações pessoais e a nossa humanização” (p. 36).

O problema é o entrave causado por pessoas a quem tal mudança de perspectiva certamente causaria enorme pavor, como adverte o nosso puxador de conversa já quase concluindo o assunto: “Essa mudança assusta as mentes estruturadas para dominar, explorar e subordinar. O pavor delas é a ideia de ter uma economia que seja uma economia do comum, que tenha a vida como finalidade última, em que a igualdade econômica e social possa conviver com as diferenças culturais” (p. 36).      

Numa das ocasiões em que conversa especificamente sobre o pensamento decolonial, o nosso puxador de conversa acena com uma proposta tão ousada quanto necessária; proposta essa que, se levada a efeito, provocaria uma verdadeira revolução no ensino e aprendizagem. Diz ele:

“A construção teórica e política de um projeto transmoderno, do tipo transdisciplinar, para decolonização do modelo de conhecimento sedimentado nas universidades da América Latina e, em particular, do Brasil, implica a coexistência, no mesmo processo de formação, entre distintos elementos pedagógicos dos saberes (dos povos originários, dos povos negros, dos camponeses, dos pescadores, dos povos das florestas, da economia doméstica, da construção civil, da arte popular, da medicina popular, etc.) e os saberes universitários vigentes. Implica a construção de centros educacionais de produção, reprodução e ampliação de usos dos saberes não eurocêntricos. Implica, ainda, o reconhecimento da validade desses saberes e da garantia para que eles possam ser transmitidos em igualdade de condições, embora não sejam equivalentes e nem sempre possam ser ensinados de forma disciplinar” (p. 69).

Explicitando o modo de troca de conhecimentos com seus interlocutores, nosso conversador diz, a certa altura da conversa: “Gosto de ser professor; um puxador de conversa em sala de aula. Entendo que puxar conversa é um ato livre, o que não significa que não possa ter sua complexidade; puxar conversa é uma forma de construção e socialização de saberes complexos porque se trata de um diálogo que é tecido conjuntamente por conversadores diversos, cada qual com o seu saber diferente e complementar, como diz Edgar Morin”. (p.10).

O professor Uribam é um excelente conversador, e o seu livro “Crise Civilizacional e Pensamento Decolonial: Puxando Conversa em Tempos de Pandemia” é, como uma boa calçada dessas que ainda se encontram em pequenas cidades do interior, uma ótima oportunidade para puxar conversa com ele sobre assuntos que, pelo tom coloquial como são expostos, ganham em simplicidade sem perder a profundidade, proporcionando a leitores não iniciados nos meandros de assuntos complexos como economia, conjuntura política e congêneres – dentre os quais me incluo -, possam participar da conversa sem se sentir excluídos. Sobre o propósito do livro, ele afirma: “Este livreto é o mote da conversa, o primeiro passo, o convite para que possamos tecer juntos uma reflexão sobre a crise do processo civilizador da modernidade, sobre o pensamento decolonial, sobre as múltiplas crises que assolam o Brasil e sobre o caráter do Governo Bolsonaro” (p.10).

Sua estratégia foi certeira. Além de me proporcionarem o entendimento dos assuntos puxados na conversa, cheguei ao fim do livro conhecendo um pouco mais sobre o modo de pensar do professor Uribam Xavier, um homem simples que gosta de cuscuz, tapioca, café com leite, peixe do mar frito com pirão e frutas de época. Atualmente é ativista decolonial, anti-imperialista e professor titular do Departamento de Ciências Sociais da UFC e mora em Fortaleza. Seu último livro publicado foi: “América Latina no Século XXI: As resistências ao Padrão Mundial de Poder”. Escreve com frequência para o site segundaopiniao.jor.br.

Concluo este breve texto com uma fala dele que oferece lastro suficiente para puxar muita conversa na calçada, seja ela de pedra, impressa ou até mesmo virtual: “Se o líder e intelectual indígena Ailton Krenak nos oferece ideias para adiar o fim do mundo, podemos nos juntar a ele e ao seu povo para pensar um outro fim do mundo” (p. 36).

 

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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