Mas o que se costuma dizer é que existe um divórcio clássico entre a carne, o prazer carnal, o gozo e Deus, o espiritual, o religioso, a santidade. “O santo é puro espírito”, diz-se. Mas não, em absoluto. O santo é um homem – uma mulher – em cujo corpo reverberaram tão violentamente os impulsos do amor que sua alma desliga-se do envoltório corpóreo para evadir-se pelas esferas tão cobiçadas (ver drogas e consortes) da essência superior do ser. O santo é uma forma avançada da humanidade. Deu alguns passos a mais nas metamorfoses do “Homo Sapiens”. O santo nos interessa porque tem a sabedoria de ser louco, vale dizer, de ultrapassar as fronteiras do natural para inventariar outras formas de comunicação com o invisível. Provavelmente será alcançado pela ciências nas próximas décadas, pois experimenta sozinho, sem ter pretendido, o campo das descobertas magnéticas que o futuro está para nos revelar. Ele vibra com conhecimentos inexprimíveis, pois não é nem o cientista nem o técnico daquilo que vivencia.

Elisabeth Reynaud

[Teresa de Ávila ou o divino prazer. Trad. Clóvis Marques. – São Paulo: Record, 2001, p. 13]

 

 

Em conversa esta semana com o amigo Francisco Telésforo Celestino, ele me dizia: “Gosto muito de ler, mas a leitura de que gosto mesmo é a vida de santos”. No ato,  perguntei-lhe se já havia lido a “Autobiografia” de Santo Antônio Maria Claret. Como me respondesse negativamente, naquela noite mesmo encaminhei-lhe um exemplar do livro com os melhores votos de uma agradável leitura. É um hábito que adquiri há alguns anos, presentear livros sobre a vida de santos. Esse que mandei para meu amigo se tornou um dos mais presenteados desde que o li. Tenho sempre um de reserva comigo. Quando a oportunidade aparece, como ocorreu esta semana, lá vai mais uma Autobiografia de presente.

A exemplo do amigo a que me referi acima, também sou um apaixonado pela leitura da vida dos santos. Essa paixão nasceu ainda na infância, quando li uma história de São Bosco narrada para crianças. O título da história era “Dom Bosco e seus bichinhos”. Contava eu, então, dez anos de idade. Após a leitura, Dom Bosco havia ganho mais um devoto, pois passei a rezar para ele todas as noites antes de dormir. Recordo que, por mais sonolento que eu estivesse, fazia um esforço para, sentado na rede, rezar três Ave Marias e oferecê-las a Dom Bosco e Nossa Senhora.

Por que, se poderia indagar, todo esse interesse pela vida dos santos? No meu caso, acho difícil encontrar uma explicação plausível. Certamente, não é por querer imitá-los, almejando alcançar, um dia, a glória dos altares. Longe de mim tal pretensão. Esse interesse se deve, muito mais, talvez, à singularidade revelada por estas vidas tão extraordinárias, tão prenhes de fatos insólitos que tocam, não raro, as fímbrias do impossível.

Não resta dúvida de que muitos feitos extraordinários atribuídos aos santos devem ser creditados à crendice popular e à lenda, não merecendo que se lhes conceda credibilidade. Em que pese, no entanto, essa constatação, não hesito em afirmar que há um número igualmente grande de fatos realmente fantásticos os quais tenho como expressões da mais absoluta verdade.

Estou absolutamente de acordo com Elisabeth Reynaud quando afirma: “O santo é uma forma avançada da humanidade”. Os santos são, antes de tudo, pessoas altamente centradas, pois atingiram o mais alto grau de autoconsciência possível a um ser humano. Isso os torna capazes de realizar e experimentar o que nós, comuns mortais, elencamos no rol dos feitos extraordinários. Quanto se lê a vida de um Santo Antônio de Pádua, um São Francisco de Assis, um Santo Antônio Maria Claret ou de outros tantos que aqui eu poderia citar, ficamos boquiabertos ao constatar que aquilo que para nós parece extraordinário, parece impossível, para eles era quase o trivial, o comum. Apenas para citar um exemplo, quero lembrar aqui Santa Teresa d’Ávila, que tinha que fazer um enorme esforço para não levitar, devido ao incômodo que a situação lhe causava. Para qualquer um de nós, porém, pessoas comuns, levitar é não mais que uma impossibilidade.

Diz Elisabeth Reynaud, no livro “Teresa de Ávila ou o divino prazer”, do qual tirei o trecho citado em epígrafe a este texto: “Recebemos aquilo que pedimos” (p. 13). O santo pede tudo. Ele pede O Todo. Mas antes de pedir tudo e O Todo, ele dá tudo e se dá todo. Por isso está apto a receber tudo e o Todo. Fazendo-se um com o Todo, de Quem tudo recebe, para ele não há mais impossível: ele, então, pode tudo, pois, conforme assevera o texto bíblico, “As coisas impossíveis aos homens são possíveis a Deus” (Lc. 18,27).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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