A forma mais divina de conhecimento é aquela a que se chega por meio do conhecimento adulto, segundo a unificação que dá ensejo a que a capacidade da mente transcenda; quando a mente, separando-se de todas as coisas e, numa segunda fase, abandonando-se a si mesma, é levada pelo processo unitivo a unir-se aos raios de transcendente esplendor; e lá e cá, embora permaneça [ela mesma], submerge inteiramente na luz do abismo de Sabedoria, cuja profundidade não consegue indagar.

São Dionísio de Alexandria

[Citado em: Sgarbossa, Mario. Os santos e os beatos da Igreja do Ocidente e do Oriente: com uma antologia de escritos espirituais. Tradução Armando Braio Ara. – São Paulo: Paulinas, 2003, p. 649.]

No texto postado neste blog no dia 25 de outubro, Chutando o pau da barraca, ao me referir à crise da meia-idade afirmei que quando alguém entra nessa fase da existência, lhe é solicitada uma ressignificação da vida. Tal ressignificação, no entanto, quando vista sob a perspectiva da psicologia junguiana, deságua, necessariamente, na busca de um sentido espiritual. Isso quer dizer que o que está em jogo é a transcendência dos padrões mentais de organização habitual da vida. Urge, portanto, que a pessoa que se encontra imersa nesse processo encontre formas adequadas de transcendência, a fim de que a mente possa dar o salto necessário para atingir a outra margem, apropriando-se de um novo saber. É esse novo saber que poderá conferir à vida um novo significado, um novo sentido e, portanto, proporcionar a almejada mudança de rumo.

Não é um processo fácil, muito pelo contrário. Mudar exige esforço, e que esforço! Exige compromisso, responsabilidade, seriedade e perseverança. Penso que no momento que a humanidade atravessa a tarefa se torna mais difícil do que em décadas passadas. Isso porque, de um modo geral, a maioria das pessoas não respeita mais o processo pelo qual as coisas acontecem. Como já tive oportunidade de mencionar em outro texto postado neste blog, querem os fins, mas não querem os meios.

Ora, acontece que, quem quer chegar a um determinado lugar, deve, necessariamente, percorrer um itinerário, seguir um percurso. Tal percurso pode, evidentemente, ser percorrido de formas diversas. Um irá de carro, outro preferirá fazê-lo de trem ou de navio e um terceiro poderá torná-lo mais rápido tomando um avião. O que vai determinar a forma como o percurso será feito é uma soma de fatores diversos, que tem muito a ver com a história de vida da própria pessoa, além de uma certa liberdade que cada um tem de escolher a que mais lhe convenha. Mas cumprir o percurso é inevitável, quanto a isso, não há outra alternativa.

Esse percurso, que Jung chamou de processo de individuação, exige que a pessoa aceite abrir mão de alguns esquemas mentais que começam a se revelar obsoletos, uma vez que não podem mais servir de sustentáculo à vida. Isso acontece porque uma nova lógica, um novo olhar sobre o mundo e a existência estão se imiscuindo, se insinuando, exigindo que velhas perspectivas até então adotadas como filosofia de vida sejam deixadas de lado.

Essa é, provavelmente, a maior dificuldade enfrentada. É muito difícil, na verdade penoso mesmo, abrir mão de hábitos e esquemas nos quais nos instalamos comodamente ao longo dos anos. O problema é que, quando chega a crise da meia-idade, a pessoa começa a perceber que eles não funcionam mais, começam a se mostrar inadequados para a nova fase que já começa a se insinuar.

É exatamente aí que uma grande coragem é exigida. O novo assusta. Faz parte da natureza humana opor uma certa resistência a tudo o que é novo, diferente, especialmente quando se trata de comportamentos e esquemas mentais de pensamento. Transformar uma visão de mundo não é coisa que se faça da noite para o dia. É por esse motivo que insistimos na necessidade, ou melhor, na inevitabilidade do processo. Essa mudança assusta porque, sob diversos aspectos, é como se déssemos um salto num abismo, sem saber o que tem lá embaixo. Um profundo e obscuro abismo de densas e apavorantes trevas se abre diante da pessoa neste momento.

Apesar do medo que inevitavelmente se terá que enfrentar, uma coisa não pode ser esquecida: só aceitando o convite do abismo se poderá ter acesso ao grande prêmio, o qual não é outra coisa senão um novo saber sobre a vida. É esse saber que vai proporcionar à pessoa galgar um novo patamar nesta emocionante aventura que é a existência humana, tornando uno o que estava fragmentado e dividido, o eu em processo de transmutação e renascimento.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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