Alguém disse: “Mawlana não fala”. Eu disse: “Foi minha imaginação que atraiu essa pessoa; minha imaginação não lhe diz: “Como vais?” ou “Como estás?” Ela a atraiu sem palavras. Se é dessa maneira que minha realidade atrai e conduz a outro lugar, o que há de espantoso nisso? A palavra é a sombra da realidade e seu complemento. Se a sombra atrai, a realidade atrai mais ainda. A palavra é um pretexto: o que faz uma pessoa ser atraída por outra é a afinidade que as une, não a palavra. Assistir a milhares de milagres e prodígios sem desfrutar dessa parte de profecia e santidade, de nada serve. É essa correlação que produz a febre e a inquietação. Se na palha não houvesse um pouco de âmbar, ela jamais se sentiria atraída pelo âmbar; ambos têm uma homogeneidade invisível e oculta.

Mawlana Rumi

[Jálál al-Din Rumi, Mawláná. Fihi ma fihi: o livro do interior. Tradução Margarita Garcia Lamelo. – Rio de Janeiro: Edições Dervish, 1993, p. 29]  

Jálál al-Din Rumi (1207-1273), ou simplesmente o Mawlana Rumi é um sábio muçulmano que viveu na Pérsia. Rumi, além de ser considerado um dos maiores poetas sufi, foi o fundador da tariqa mawlawiya, a ordem dos Dervixes Dançantes. Sua principal característica é o sama, uma dança giratória. Através da execução ritual do sama os  dervixes mawlawis entram em êxtase.  Ao sama associa-se, ainda, como importantes elementos da tariqa, a música e a poesia, que exerceram grande influência no império otomano, indo além de suas fronteiras.

Para quem quer ter um contato inicial com os ensinamentos do Mestre Rumi, a obra Fihi-ma-fihi ou O livro do interior, publicado há alguns anos no Brasil pelas Edições Dervish,  constitui uma ótima alternativa. A maior parte do livro é escrito em forma de diálogo, como se o Mestre estivesse conversando com discípulos e interlocutores. Alguns textos abordam os assuntos de tal foram que cada parágrafo pode ser tomado como um aforismo que, por si só, já constitui matéria para muita reflexão, como o primeiro parágrafo do capítulo 15, em que Rumi fala de Deus:

Há no homem um amor, uma dor, uma inquietude, um apelo que, mesmo se tivesse cem mil universos, não encontraria calma e repouso. As pessoas exercem todos os tipos de profissão, de negócios, e fazem todos os tipos de estudos – medicina, astronomia etc. – mas não encontram repouso, pois seu objetivo não é alcançado. Chama-se o Bem-Amado de ´repouso da alma´; e como seria possível encontrar repouso e quietude senão n´Ele? (p. 96).

Nas páginas do Fihi-ma-fihi também se encontra uma série de histórias contadas pelo mestre. Quando pego o meu exemplar e começo a ler aquelas histórias maravilhosas e repletas de edificantes ensinamentos, transporto-me mentalmente para a antiga Pérsia e me imagino sentado aos pés de Rumi como um de seus discípulos. Uma das histórias de que mais gosto fala da amizade, e transcrevo-a abaixo como conclusão deste texto:

Mawlana Shams-ud-Din Tabrizi (que Deus santifique seu sirr!) dizia: “Uma grande caravana viajava e não encontrava cidade alguma, nem água. De repente, encontraram um poço, mas eles não tinham nenhum balde. Pegaram um caldeirão e cordas, e deixaram-no descer até o fundo do poço. Puxaram o caldeirão, mas a corda arrebentou. Deixaram descer um outro caldeirão e este caiu. Daí então amarraram pessoas da caravana com cordas, e enviaram-nas ao poço. Não voltaram. Havia ali um homem inteligente que disse: ´Eu vou descer´. Deixaram-no descer. Estava quase chegando no fundo do poço, quando um negro aterrador apareceu. Esse homem inteligente disse a si mesmo: ´Não escaparei, mas é preciso agir de forma inteligente e sem perder a cabeça, para ver o que vai acontecer comigo´. O negro disse: ´Não digas nada. És meu prisioneiro, não escaparás, a não ser que me dês uma resposta correta. Nada mais te salvará´. O homem respondeu: ´Fala´. O negro disse: ´Entre todos os lugares, qual é o melhor?´ O homem pensou: ´Sou prisioneiro e impotente em suas mãos. Se eu disser Bagdá ou qualquer outra cidade, é como se demonstrasse desprezo por sua morada´. Então ele respondeu: ´O melhor lugar é aquele onde o homem tem um amigo íntimo, mesmo se este se encontra no fundo da terra ou em um esconderijo de rato´. O negro disse: ´Bravo, bravo, estás salvo. És um verdadeiro homem neste mundo. Agora, eu te salvo e graças a ti salvo os outros, de agora em diante não cometerei mais crimes. Perdoei todos os homens do mundo por amor a ti´. Em seguida, ele deu água às pessoas da caravana” (p. 120).

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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