Padre Antônio Vieira nasceu em Lisboa em 1608 e morreu na Bahia em 1697. Viveu praticamente todo o século XVII, sendo uma de suas principais figuras em termos de história e literatura. A beleza e a atualidade de seus sermões fazem de Vieira um autor de leitura prazerosamente indispensável.

Padre Antônio Vieira. pintura de Cândido Portinari.

Sou católico e graduado em Letras Português, mas não foi dentro da Igreja nem da Universidade que conheci os sermões do Padre Antônio Vieira. Comecei a ler o jesuíta por conta própria, quando tive que ministrar minhas primeiras aulas sobre literatura barroca.

Imaginem só a situação: sermões do século XVII em vários volumes, livros extensos e surrados, aparência de coisa ultrapassada, citações em latim… Lembro-me que fui à biblioteca sonolento, na certeza de que não terminaria o primeiro sermão sem antes cochilar duas ou três vezes. Mas logo no começo a leitura foi impactante. As primeiras páginas me tiraram o sono e o engano inicial. Logo me senti entusiasmado com a profundidade da reflexão e com o estilo fascinante e provocante da escrita do Padre Antônio Vieira.

No comecinho do Sermão no Sábado Quarto da Quaresma, Vieira comenta o evangelho da mulher adúltera: “Esta mulher nesta mesma hora foi achada em adultério (Jo 8, 4). Esta mulher? E o cúmplice? Foram dois os pecadores, e é uma só a culpada? Sempre a justiça é zelosa contra os que podem menos.” Observemos as interrogações, tão próprias da literatura barroca, que interpelam o leitor, chamando sua atenção.

Notemos também o aforismo, a máxima, o ensinamento que resume uma verdade: sempre a justiça é zelosa contra os que podem menos. Assim suas palavras se apresentam como exemplares, citáveis, possíveis de serem reinscritas em diferentes textos, o que favorece e incentiva sua circulação.

Também essas frases, em virtude de sua forma generalizante, proporcionam ao texto grande impessoalidade, como se não houvesse uma pessoa como autor particular concreto, mas apenas a voz do Sagrado exprimindo uma verdade imutável. Convém assinalar ainda que essas palavras do Padre Antônio Vieira nos servem como denúncia do vício machista de sempre querer colocar a culpa na mulher, vício esse que, infelizmente, persiste nos dias de hoje. Vieira é atualíssimo!

Também é impossível, em tempos de Lava Jato, não perceber a absoluta atualidade do Padre Antônio Vieira ao ler o Sermão do Bom Ladrão, em que o jesuíta fala dos ladrões “de maior calibre e de mais alta esfera” – gente do governo que rouba por todos os modos, em todas as pessoas e em todos os tempos, sempre na voz ativa, enquanto o povo sofre o roubo, passivamente.

No Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma, Vieira ensina: “A cegueira que cega cerrando os olhos, não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todos.” O cego de olhos abertos. É o paradoxo, a associação de ideias contraditórias, outro recurso de linguagem frequente nos sermões de Vieira.

Você pode ou não concordar com o que diz o Padre Antônio Vieira, inegável, porém, é a beleza e a atualidade dos seus sermões. Encerro da melhor forma, citando mais uma vez Vieira, agora com um trecho do Sermão da Quarta-Feira de Cinza:

“Distinguimo-nos os vivos dos mortos, assim como se distingue o pó do pó. Os vivos são pó levantado, os mortos são pó caído; os vivos são o pó que anda, os mortos são o pó que jaz. […] Não aquieta o pó, nem pode estar quedo; anda, corre, voa; entra por essa rua, sai por aquela; já vai adiante, já torna atrás; tudo enche, tudo cobre, tudo envolve, tudo perturba, tudo toma, tudo cega, tudo penetra; em tudo e por tudo se mete, sem aquietar nem sossegar um momento, enquanto o vento dura. Acalmou o vento, cai o pó, e onde o vento parou, ali fica; ou dentro de casa, ou na rua, ou em cima de um telhado, ou no mar, ou no rio, ou no monte, ou na campanha. Não é assim? Assim é. E que pó, e que vento é este? O pó somos nós. O vento é a nossa vida. Deu o vento, levantou-se o pó; parou o vento, caiu. Deu o vento, eis o pó levantado; estes são os vivos. Parou o vento, eis o pó caído; estes são os mortos. Os vivos pó, os mortos pó; os vivos pó levantado, os mortos pó caído; os vivos pó com vento, e por isso vãos; os mortos pó sem vento, e por isso sem vaidade. Esta é a distinção, e não há outra.”

Tagged in:

,

About the Author

Vanderlúcio Souza

Padre da Arquidiocese de Fortaleza. À busca de colaborar com a Verdade.

View All Articles