Nos últimos meses de 2013, o noticiário nacional foi tomado por uma discussão entre gigantes. De um lado, pesos pesados da MPB como Caetano Veloso, Gilberto Gil, Djavan, Milton Nascimento e Erasmo Carlos. Do outro, os principais biógrafos brasileiros, como Ruy Castro, Lira Neto e Fernando Morais. No centro da disputa, o direito e a legalidade destes últimos de contar as histórias dos primeiros sem autorização prévia. Passados dois anos de muita troca de farpas e discursos acalorados, a polêmica das biografias permanece sem novidades para ambos os lados.

Marcada para 25 de março deste ano, a votação do projeto de lei que libera a publicação de biografias não autorizadas no Brasil foi adiada. Relator do projeto, Ricardo Ferraço (PMDB-ES) pediu que o texto fosse retirado da pauta da Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal para que fosse adequado ao novo Código Civil, sancionado mês passado. O senador José Agripino (DEM-RN) também pediu pelo adiamento, para que o projeto fosse enviado a outras comissões como educação, cultura e esporte. Sugerido pelo então deputado Newton Lima (PT-SP), o PL 393/11 visa alterar o Código Civil para “ampliar a liberdade de expressão, informação e acesso à cultura”.

“A conspiração a favor do silêncio histórico, a cultura do segredo e a aversão ao escrutínio público das coisas de interesse público, combinadas, têm muito poder”, indigna-se Mário Magalhães, que dedicou nove anos a escrever a história do guerrilheiro baiano Carlos Marighella (1911 – 1969). E continua: “A manutenção da legislação que permite a exigência de censura prévia para biografias não autorizadas é um revés da democracia e dos direitos de expressão e informação”.  Segundo o autor, a possibilidade de ter seus projetos retirados das lojas – como aconteceu com Roberto Carlos em Detalhes (Ed. Planeta, 2006), de Paulo César de Araújo – fez muitos autores esperarem para tirar seus rascunhos da gaveta. “Só um masoquista empenhará nove anos de trabalho em um projeto cuja circulação está permanentemente ameaçada por uma legislação que, embora introduzida na democracia, tem o amargo sabor das ditaduras”, protesta o jornalista.

A biografia não autorizada do Rei foi o episódio que deu mais notoriedade a essa discussão. A indignação de Roberto, que assumiu nunca ter lido o livro, foi tanta que ele chegou a se reunir com outros artistas na associação Procure Saber. Além dos compositores citados no início desse texto, a fila que seguiu a maior estrela da musica brasileira inclui Adriana Calcanhoto, Chico Buarque, Lenine e muitos outros. Presidida pela atriz Paula Lavigne, a entidade protagonizou embates pesados em TV, rádio e jornal, com direito a acusações de calúnia e ofensas pessoais. Procurado pelo O POVO para comentar o adiamento da votação, o Procure Saber informou que “que a lei das biografias não está mais entre os assuntos da pauta da APS”. A prioridade agora é a regulamentação da lei que fiscaliza o Ecad, instituição privada que arrecada e distribui recursos oriundos dos direitos autorais.

Embora esteja proibida de ser comercializada em livrarias no Brasil, a biografia de Roberto Carlos tornou-se um item valioso em lojas estrangeiras e em sebos virtuais – um exemplar no Mercado Livre chega a R$ 600. Além disso, Paulo César lançou um novo trabalho onde conta detalhes do processo que levou do seu biografado. Em o Réu e o rei (Cia. das Letras, 2014), o jornalista conta episódios constrangedores como o juiz que pediu autógrafo e foto a Roberto após uma audiência ou de como o compositor ficou calado no tribunal, enquanto os advogados defendiam suas posições. “O Roberto Carlos conseguiu embargar o excelente trabalho de Paulo Cesar de Araújo porque teve a seu favor um magistrado suspeito, seu fã incondicional. Mas o PC foi mais inteligente – o Rei é sempre burro – e escreveu uma biografia da biografia proibida”, comenta o jornalista Alberto Dines. Taxativo em relação à questão, o criador do Observatório da Imprensa afirma que a liberdade de expressão deve se sobrepor às demais liberdades. “Qualquer regulamento será inconstitucional. Biografias de pessoas vivas não podem ser submetidas a qualquer crivo ou filtro. Os nossos legisladores demoram em liberar a questão porque temem serem vítimas de biógrafos destemidos. Nossos legisladores preferem o arbítrio, sentem-se mais garantidos. Mas nossa história recente nos ensinou que o censurado pode sobrepor-se ao censor. Basta querer”, acrescenta.

> Obras proibidas:

– Noel Rosa, uma biografia (1990)

Considerado o relato definitivo sobre o Poeta da Vila, a biografia foi embargada pela família que questionou os suicídios do avô e do pai do compositor. Escrito por João Máximo e Carlos Didier, o livro chega R$ 600 nos sebos virtuais.

– Sinfonia Minas Gerais, A vida e a literatura de João Guimarães Rosa (2007)

Proibida desde 2008, a biografia de Alaor Barbosa foi acusada de plágio e retirada das lojas. A obra só foi liberada em 2014.

– Lampião, o mata sete (2011)

Escrita por Pedro de Morais, a biografia causou celeuma quando insinuou que o cangaceiro pernambucano seria homossexual. Questionando também a fidelidade de Maria Bonita, a obra só foi liberada para venda em 2014.

– Estrela Solitária, Um brasileiro chamado Garrincha (1995)

Vencedora do prêmio Jabuti, a obra foi proibida cinco dias depois do lançamento. As filhas do jogador pediram indenização alegando danos à imagem do pai. Pago o valor combinado, a obra foi liberada sem cortes.

– Roberto Carlos em detalhes (2006)

Talvez o caso mais emblemático de censura às biografias, a biografia do Rei ganhou uma “parte 2”, quando o autor Paulo César de Araújo lançou O réu e o rei, relato dos processos que sofreu na justiça. A biografia continua proibida.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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