Existem muitas portas de entrada para conhecer a obra dos Mutantes. Tem as capas conceituais teatrais, engraçadas e criativas. Tem a inventividade sonora do trio que misturava, num mesmo disco, um rock lisérgico, um baião de Humberto Teixeira, um samba rock levado ao violão de Jorge Ben e uma chanson francesa. Ou ainda a irreverência incontrolável de três jovens compositores capazes de se vestirem de alienígena e sair de buggy pelas ruas de São Paulo.

O fato é que nada era comum no trabalho dos Mutantes. Ao mesmo tempo, tudo era espontâneo, libertário e divertido para Rita Lee, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias. Isso já ficou claro bem antes do álbum de estreia, lançado há 50 anos. Quando o LP Os Mutantes chegou às lojas, o trio já gozava de certo prestígio no meio musical. Cerca de dois anos antes, fizeram a primeira apresentação n’O Pequeno Mundo de Ronnie Von e causaram tanto impacto que entraram para o elenco fixo do programa. Algum tempo depois, conheceram o maestro Chiquinho de Moraes que os indicaria para acompanhar Nana Caymmi em Bom Dia. Daí foi um passo para outro convite: gravar com Gilberto Gil – então marido de Nana – o baião pop Domingo no Parque.

A aproximação com um dos mentores do tropicalismo levou os Mutantes para o cenário ideal. Segundo o biógrafo do trio, Carlos Calado (autor de A Divina Comédia dos Mutantes), primeiro Gil pensou na erudição do Quarteto Novo para acompanha-lo. Mas o conjunto que contava com Hermeto Pascoal, Heraldo Monte, Theo de Barros e Airto Moreira ouviu aquela ideia de misturar música nordestina com Beatles como se fosse um xingamento à mãe. Para os Mutantes, tudo junto podia dar o maior pé.

Tanto que eles já saíram da gravação de Domingo no Parque com um convite para um disco próprio. Os arranjos seriam do maestro Rogério Duprat, o mesmo da gravação de Gil. Erudito com mente aberta para as novidades do pop, o carioca deu materialidade a todas as viagens sonoras que Rita, Sérgio e Arnaldo pensavam. Uma pequena amostra da capacidade criativa é Panis Et Circences, hino lisérgico dado a eles de presente por Caetano Veloso e Gil. A faixa que também batizou o álbum manifesto dos tropicalistas (também lançado em 1968) é uma viagem sem escalas por paisagens desconexas que criticam a acomodação. Quase operística, a faixa confronta flautas medievais com guitarra elétrica, vocais harmônicos com efeitos eletrônicos.

Diante dessa explosão de timbres, A Minha Menina parece inocente. Composição de Jorge Ben, que canta, tosse e toca violão na faixa, o sambarock não perdeu um grau de frescor nesses 50 anos. O mesmo acontece com a festiva e concretista Batmacumba, outra de Gil e Caetano. Deste último, tem uma versão hilária de Baby, com direito a climas soturnos e lambidas de sorvete. E o que dizer de uma banda de rock que estreia cantando Adeus Maria Fulô, de Sivuca e Humberto Teixeira? Ou ainda Le Premier Bonheur Du Jour, cuja elegância é entrecortada pelo som de um inseticida. Para os Mutantes, nenhum problema. Tudo é música, até uma ode lisérgica ao conquistador mongol Genghis Khan e Duprat vibrava com cada nova invenção.

O bom humor dos Mutantes se manteve em alta por mais quatro discos, até que nem eles aguentaram o tranco. As drogas tornaram-se frequentes e o sexo livre começou a incomodar Rita, enquanto Sérgio e Arnaldo entraram numa paranoia de levar o rock a “sério”. Chega de figurinos exóticos e performances hilárias. Agora eles iriam mostrar que sabiam tocar seus instrumentos e entrar numa onda progressiva. Rita, justamente a responsável pela leveza do trio, passou a não caber naquele formato à la Yes. Ela foi expulsa da banda, Sérgio passou a liderar a banda, Arnaldo entrou em depressão profunda até que pulou da janela de um hospital. Toda a graça se perdeu num mar de mágoas nunca superadas e histórias sempre questionadas.

Rita superou o baque, seguiu em frente e tornou-se o maior nome feminino do rock nacional. Sérgio Dias tentou levar os Mutantes por mais um tempo e desistiu, manteve uma pálida carreira solo e a aura de guitar hero respeitado (o que, de fato, é). Em 2006, ele reativou os Mutantes com uma nova turma e segue gravando discos e fazendo shows no exterior. Arnaldo sobreviveu à queda, mudou-se para um sítio paradisíaco e segue compondo uma obra cáustica que nunca se despregou por completo da antiga banda. Aquela obra tropicalista iniciada há 50 anos segue sendo redescoberta e cultuada dentro e fora do Brasil. Kurt Cobain era fã assumido, enquanto Sean Lennon chegou a dizer que o trio brasileiro foi mais criativo que os Beatles. Se eram ou não, eu não sei. Mas é fato que poucas vezes se voou tão alto no rock brasileiro quanto nas asas dos Mutantes.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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