Fotos: Marcos Hermes/ Divulgação

“Temo que a democracia brasileira perca qualidade com essa conjuntura. Mas, quem sabe, talvez estejamos escrevendo certo por linhas muito tortas”. É o que diz Caetano Veloso diante de um Brasil em ebulição às portas do segundo turno de suas eleições presidenciais. Sem esconder suas preferências políticas, ele busca mais tranquilidade na família que construiu e se cerca dos filhos na turnê Ofertório, que volta este fim de semana a Fortaleza. Em única apresentação no Centro de Eventos, o show traz o ídolo baiano ao lado de Zeca, Tom e Moreno, e todos apresentam suas experiências em música num encontro de afetos e histórias pessoais. Algumas delas até já foram divididas com o público o tornaram-se sucessos como Trem das Cores, Alguém cantando e Reconvexo. Por email, Caetano narra esse percurso que saiu de dentro de casa e ganhou os palcos do mundo.

O POVO – Imagino que haja uma diferença grande entre ser um pai presente em casa e sair em turnê com a família. Como tem sido essa experiência para a família Veloso?
Caetano Veloso – Pra mim tem sido uma felicidade. Eles já estão crescidos, esse é um jeito de eu ficar mais tempo perto deles. E é uma maravilha que eles cantem e toquem comigo. É bom ver que eles também se sentem bem, se comovem e se divertem.

O POVO – É muito natural que boa parte do público vá ao show querendo ver Caetano Veloso. De que forma você pode me apresentar o trabalho dos seus filhos para que o público perceba que este é mais que um show de Caetano Veloso?
Caetano – É um show meu, mas o conteúdo é místico e meus filhos são os raios de uma luz que vem da minha família em Santo Amaro. Além disso, cada um deles é um artista genuíno em si mesmo. Em todos os lugares por que passamos as plateias são tomadas pela atmosfera que emana da nossa turma – e fica extasiada com Zeca cantando Todo homem, Moreno cantando Um passo à frente ou Tom dançando passinho. Também os quatro cantando em vozes O seu amor, de Gil, é um fato cultural que tem valor único. Diz respeito à parte essencial da história da música brasileira moderna. Nós somos a experiência de um momento da vida brasileira que engrandece as pessoas.

O POVO – No texto que você escreveu sobre o novo show, existe muita afirmação sobre o caráter sentimental do projeto, mas você também fala da “responsabilidade de apresentar números com qualidade profissional”. Como é hoje sua autocobrança pela qualidade do trabalho? Com o tempo, isso cresceu, diminuiu, se manteve?
Caetano – Escrevi aquilo antes de termos o show ensaiado. À medida que ia ficando pronto, me surpreendi com a dedicação de Zeca e a naturalidade do talento de Tom. Moreno já é profissional há muitos anos, com uma obra refinada. Mas primeiro pensamos que iríamos convidar instrumentistas profissionais pra tocar conosco. Aos poucos, vimos que era mais bonito o som especial que produzimos nós mesmos. Não somos virtuoses, mas fazemos a música com respeito e cuidado. O sentimento dos temas e dos nossos afetos dá intensidade emocional ao que seria apenas correto. E mesmo alguns leves tropeços vêm com seu encanto.

O POVO – O “berço” sempre foi muito presente na sua música. Além de Bethânia, Nicinha esteve nos seus discos, você tem músicas dedicadas a Dona Canô, a Paula Lavigne, e a Santo Amaro. Como esses elementos foram costurados no novo show? Isso foi um facilitador na hora de selecionar o repertório?
Caetano – Foi facilitador e também dificultador, porque tem muitas músicas feitas pra Dedé e pra Paulinha, tem muitas feitas para eles e tem muitas sobre meus pais, meus irmãos: o tema da família é abundante em meu trabalho. A questão era fazer um roteiro que tivesse estrutura e passasse pelo tempo como um filme passa. Quando o show sai bem (o que é a maioria esmagadora das vezes) isso acontece.

O POVO – E, ainda sobre o repertório, o que foge a essa ideia de celebrar a casa e a família?
Caetano – As coisas da vida, o gosto da música. Tom me pediu que cantássemos O seu amor, que, como disse, é de Gil e pertence ao repertório dos Doces Bárbaros. Achamos que tinha ficado tão bonito que íamos abrir o show com ela. Zeca sugeriu que eu cantasse Alegria, alegria antes. Isso já mudou o show – e já mostra a você quão abrangente, para além da família, é nosso espetáculo. E há também o mero gosto: Tom e Zeca pediram pra eu cantar o Trem das cores. O cristal vai-se abrindo para mil lados, mostrando planos e arestas diferentes. Quando canto Gente, é ainda celebração de sermos gente real, uma família, mas já é a família humana toda.

O POVO – Sendo este também um show onde você está acompanhado de um trio de jovens músicos, de que forma ele dá continuidade à proposta da banda Cê?
Caetano – O nosso som é bem diferente do da bandaCê. É mais suave, mais perto da bossa nova do que do rock. Basta dizer que Dori Caymmi foi assistir e gostou muito (esse é um dos meus maiores orgulhos). Mas, é claro, Moreno toca com Pedro Sá há anos. E Tom faz parte da Dônica, uma banda de rock composta por garotos superdotados musicalmente. Então o rock não está ausente. Mas é tudo mais acústico e íntimo.

O POVO Passados 50 anos, ainda é comum usar expressões como “eterno tropicalista” para se referir a você. O que você acha desse tipo de expressão? Você se vê assim, como um “eterno tropicalista”?
Caetano – Eu gostaria de ser um eterno tropicalista. Bem, gostaria de ser eterno, de todo modo. O que desbravamos no tropicalismo me trouxe até aqui. Meus filhos nasceram depois de tudo aquilo e são também resultado daquilo tudo. Não haveria o tropicalismo sem Dedé e eu não encontraria Paulinha se não tivesse havido o tropicalismo. Quando Tom toca bem o violão e canta seus próprios versos bem escritos, vejo resultado do que Gil e Mutantes e Duprat e TomZé e Gal e eu fizemos entre 1967 e 1968.

O POVO – Lá em 1967, você era capaz de imaginar que, 50 anos depois, ainda estaríamos falando de tropicalismo?
Caetano – Às vezes é capaz que sim. Mas não tinha tempo para pensar em futuro tão longínquo. Eu queria fazer ainda algumas coisas em música e deixar isso para fazer filmes. Aí veio a prisão e veio o exílio e eu, ao fim de três anos de sofrimento, já não tinha forças para mudar a direção da minha vida. E a música é uma coisa muito forte entre nós brasileiros.

O POVO – Seu show acontece na véspera de um segundo turno que será disputado por dois candidatos com pensamentos bem claros: um defendendo um partido com uma longa história à esquerda e outro de pensamento direitista e bastante conservador. Que leitura você faz desse momento histórico e quais suas expectativas para o Brasil a partir de 2019?
Caetano – Neste momento, preparo-me para votar em Haddad. Votei em Ciro Gomes no primeiro turno. E gostaria que Lula tivesse se abstido de se dizer candidato e de ter candidatura própria do PT. Bolsonaro, embora seja um fenômeno genuíno dentro da sociedade brasileira, representa ideias opostas às que me interessam. Temo que a democracia brasileira perca qualidade com essa conjuntura. Mas, quem sabe, talvez estejamos escrevendo certo por linhas muito tortas. Eu tenho fé no Brasil e não deixei de ter porque essas tensões se apresentam.

Caetano, Moreno, Zeca e Tom Veloso – Ofertório
Quando: amanhã, 27, às 20 horas
Onde: Centro de Eventos (av. Washington Soares, 999 – Edson Queiroz)
Quanto: R$160 (arquibancada), R$200 (plateia B) e R$260 (plateia A) – Preços de inteira. À venda nas lojas Feitiço e Aliança de Ouro

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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