Certa vez, tive a chance de ver Elba Ramalho em cena de uma posição privilegiada. Bem ao lado do palco, pude acompanhar cada detalhe de sua apresentação, absorver o calor, a pulsação, o sangue no olho, a gana que ela tem para extrair dos músicos o melhor show. A multidão à frente respondia aos estímulos que vinham da paraibana com aplausos, gritos e rebolado. Se havia algo a ser consertado, tinha que ser logo por que aquele trem sonoro estava às vias de passar por cima de tudo.

Tanta proximidade virou uma chave para que eu pudesse compreender melhor sua relação com a música. Antes, no camarim, uma mulher pequena, magrinha, com uma imensa juba loira, falando baixinho, recebia amigos com tom afável. Minutos depois, no palco, a mulher vira leoa e dita o ritmo de um show que expande os limites do que se convencionou chamar de Nordeste. São 67 anos de vida, 40 de carreira e, agora, 38 discos. O mais novo rebento dessa trajetória chama-se O Ouro do Pó da Estrada (Deck Discos).

Produzido por Yuri e Tostão Queiroga, o novo álbum segue a linha que vem desde 1996, com o poderoso Leão do Norte. Os limites sonoros são o Brasil inteiro. O forró que apresentou Elba para o mundo ainda está ali, mas vem travestido de rock and roll. É o que se vê em Calcanhar (Yuri Queiroga/ Manuca Bandini) e O Fole Roncou (Luiz Gonzaga/ Nelson Valença), escolhidas, respectivamente, para abrir e fechar o disco. A primeira, inclusive, remete aos melhores momentos do mestre Sivuca (1930 – 2016), enquanto a segunda parece um cruzamento de Sepultura com Jackson do Pandeiro.

Esse forroque bota o pé no manguebeat de Recife na regravação de José (Siba), que abriu o disco de estreia da banda Mestre Ambrósio. Já dá pra imaginar esse caminhão de ritmo detonando tudo no palco. O mesmo pode ser dito de O Girassol da Caverna (Lula Queiroga), que ganhou o reforço de Ney Matogrosso para debulhar a letra cheia de armadilhas, batentes e poesia (Nesse circo de arame farpado/ Palhaço de poucas ilusões/ Cantando na festa dos leões/ Com metade do riso amordaçado).

E como não é uma corrida pra provar quem tem fôlego, O Ouro do Pó da Estrada também tem sua calmaria. Princesa Do Meu Lugar é um xote em homenagem a Belchior que se estende a todos que vão para o Sul Maravilha em busca de mais oportunidades (algo que a própria Elba viveu). Na mesma pisada, tem Se Não Tiver Amor (George Sauma), que remete aos anos 1980 da cantora que lançou maravilhas como Bate Coração e Amor com Café. E tem uma obra prima de Arnaldo Antunes (com Paulo Tatit, Alice Ruiz e João Bandeira), Se Tudo Pode Acontecer que ganha uma nova leitura pontuada pela sanfona de Mestrinho.

O Ouro do Pó da Estrada conta ainda com composições de nomes fundamentais na obra de Elba Ramalho. De Dominguinhos e Fausto Nilo, tem Além da Última estrela com a luxuosa harpa de Cristina Braga. De Chico César e Jeneci, Oxente é um forrozão radiofônico e bem feito. E tem duas novidades. A primeira é Girassol, da banda Cidade Negra, que ganha introdução de cordas feita por Arthur Verocai antes de cair no reggae/xote. Mas se tem uma faixa que esperava a voz de Elba Ramalho é O Mundo (André Abujamra). Dividida com Maria Gadú, Lucy Alves e Roberta Sá, a faixa vira uma celebração pop à miscigenação, à mistura e à tolerância e faz todo o sentido para confirmar que o mundo ficou pequeno para aquela cantora que surgiu com voz de carpideira antes de se tornar uma das mais completas intérpretes da música brasileira.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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