Apesar do muito que se escreveu e falou sobre Raul Seixas, ainda é difícil definir quem foi o roqueiro baiano que deixou uma obra adorada por legiões de seguidores 30 anos depois de sua morte. O compositor de Gita, Ouro de Tolo e Metamorfose Ambulante é muito daquilo que ficou nas suas letras. Talentoso, performático, dono de uma verve crua, filosófica, transcendente. Pai e marido saudoso. Alcoólatra, inconformado, transgressor e satanista.

Muitos caminhos levam a Raul Seixas ao mesmo tempo em que nenhum o define. Não Diga Que a Canção Está Perdida (Ed. Todavia), biografia escrita por Jotabê Medeiros, vai ao encontro de muitas dessas faces do “maluco beleza”. O livro será lançado amanhã, às 17 horas, no Cantinho do Frango, com a presença do autor, seguido do Raulzito Cover, show do músico paranaense João Elias da Silva. Medeiros é também autor de Apenas Um Rapaz latino-Americano, biografia de Belchior lançada em 2017. A seguir, o jornalista e crítico musical conta detalhes da pesquisa que levou à biografia de Raul e as discussões que o livro já levantou. Confira.

O POVO – Raul Seixas é um caso raro de culto a um roqueiro brasileiro. Só encontro algum paralelo com Renato Russo. A que você credita essa permanência do nome e da obra de Raul?
Jotabê Medeiros – Acredito que Raul encarnou um personagem raro, que conseguia dizer “não” ao establishment e usufruir dele ao mesmo tempo, que preservava as características de rebeldia e deboche enquanto tratava, ao mesmo tempo, de questões cruciais da sociedade brasileira. Isso garante sua permanência para além do nosso tempo.

O POVO – Queria que você contasse um pouco da pesquisa que levou ao livro. Quando começou, por onde começou, que fontes foram mais relevantes, que novos documentos você apresenta?
Jotabê – Eu comecei há um ano e meio, desafiado pela minha editora. No início, não tinha nada, mas um amigo fotógrafo, Juvenal Pereira, me cedeu uma série de fotos do diário de Raul, que o próprio Raul lhe tinha mostrado em 1988 e permitira que ele fotografasse. Aquilo foi o ponto de partida. As fontes mais relevantes foram os amigos e colaboradores, como Mauro Motta, Leno e Rick Ferreira, além dos Panteras. Eles conhecem toda a história com detalhes, lembram de tudo, só precisa lhes fazer as perguntas certas. Outra coisa que é fundamental para a compreensão da saga de Raul são os discos. Ouvi todos, muitas vezes, e examinei os encartes originais para fazer considerações estéticas.

Jotabê Medeiros (Foto: Renato Parada)

O POVO – Uma história que já levantou polêmica sobre seu livro é que Raul teria entregado Paulo Coelho aos militares durante a ditadura. Apesar disso, Raul sempre foi reconhecido pelo seu caráter libertário e transgressor. Para você, o que esse episódio revela sobre o biografado?
Jotabê – Creio que o episódio revela mais sobre a época em que eles viviam do que sobre eles mesmos. Raul e Paulo Coelho foram acossados pela ditadura, em 1974, por causa de um simples folheto, o gibi que acompanhava o disco Krig-ha, bandolo!. Esse encarte é inofensivo, não incita a nenhuma rebelião, é uma peça gráfica e pop. A ignorância de um regime contra artistas os empurrou para um tipo de armadilha, de confrontação, de suspeição. Remontei os fatos, mas não sou conclusivo em relação a isso porque é impossível: os documentos que encontrei no Arquivo Público do Rio de Janeiro não permitem assegurar nada. Entretanto, são ricos em detalhes de como a repressão procedia.

O POVO – Sobre esse assunto, Paulo Coelho primeiro celebrou a revelação, depois criticou e disse que seria “apenas para vender”. Como você tem recebido a repercussão desse episódio?
Jotabê – Era algo que eu já pressentia, é um terreno muito cheio de suscetibilidades. Há outros pontos que as pessoas podem achar controversos no livro, mas o fato é que não é um livro que tenha apelo de “vendável”, como disse o Paulo. É complexo, aprofundado, analítico. Só posso dizer que o escritor está errado a esse respeito. Quanto ao recuo dele, também acho natural: Raul é um mito, qualquer dúvida que seja levantada sobre sua personalidade será questionada – no caso, de forma muito estridente.

O POVO – Outro tema que tem levantado discussão é sobre Raul ser homofóbico. Ele era homofóbico?
Jotabê – O livro também não afirma isso peremptoriamente. Raul era um homem contraditório, às vezes era homofóbico e misógino, mas sua prática era o oposto disso. Ele trouxe Edy Star da Bahia para lançá-lo como artista solo, e Edy é um dos primeiros gays assumidos da MPB, além de artista notadamente glam. E não conheço outro caso de um artista homem que tenha aberto tanto sua obra para a participação das companheiras (Edith Wisner, Gloria Vaquer, Kika Seixas) como Raul. Era um paradoxo ambulante.

O POVO – Há dois anos, você lançou a biografia do Belchior, ainda no calor da sua morte. Algumas passagens, inclusive foram questionadas por pessoas que conviveram com o cearense. Que diferenças você aponta no seu processo de pesquisa e escrita entre essas duas biografias?
Jotabê – Lancei o livro de Belchior, Apenas um rapaz latino-americano, em mais de 20 cidades do País, quase todas as capitais. Dei palestras e participei de debates sobre a obra e a vida de Belchior por todo o Brasil. O livro é um êxito absoluto, está nas mãos de mais de 25 mil brasileiros. Creio que o que eu tinha em mente eu consegui, que era ampliar a compreensão e o conhecimento a respeito desse artista cearense que é um dos maiores poetas que o País já produziu. Fora isso, eu não posso falar sobre as motivações de haters ou detratores, eu não tenho tempo para esse tipo de diatribe. Os processos foram muito diferentes: eu escrevi sobre Belchior consciente de que era um artista que tinha modificado meu jeito de ser e compreender o mundo e suas palavras são muito importantes na minha formação; já Raul era um fenômeno, um ícone da cultura brasileira que tivera uma repercussão muito maior, soubera aproveitar os códigos da mídia emergente a seu favor, tornara-se um caso sociológico complexo. Eu tive que me debruçar sobre toda a sua História e a do País simultaneamente, foi um desafio hercúleo.

O POVO – Queria saber da sua relação pessoal com esses dois biografados. Quando você conheceu a obra de cada um deles? De que formas eles te impactaram?
Jotabê – Conheci ambos na infância e na juventude, no interior do Paraná, tocando no rádio. Cada um deles teve um impacto. Belchior me fez querer conhecer as palavras, aprender a escrever, buscar o significado das palavras. Já Raul incitava à rebelião, ao rompimento com as opressões. Ambos foram importantes, cada qual à sua maneira.

O POVO – Muito já se escreveu sobre Raul em livros, revistas e jornais. Que novas perspectivas seu livro acrescenta ao personagem?
Jotabê – Creio que o livro é, antes de tudo, uma história. Eu me dedico a contar uma história de forma sedutora, como se estivesse costurando mil outras histórias. Amarro todas elas e tento dar cadência e ritmo, velocidade e tensão. Se consegui, o leitor dirá.

O POVO – Passados 30 anos de sua morte e mais um tanto desde o lançamento da parte mais contundente de sua obra, que importância tem Raul Seixas para o Brasil de hoje?
Jotabê – Raul é moderno e clássico ao mesmo tempo. Por ter feito uma obra muito coloquial, popular, e ao mesmo tempo com um apelo místico, profundo, ele se posiciona como um artista de muitos mundos, de compreensão muito imediata e, também é muito importante, com notável senso de humor. Há muitos discípulos dele que são extraordinários, mas ele segue sendo o mestre absoluto.

O POVO – Que espaço você acha que teria para a obra do Raul Seixas hoje, caso ele não tivesse morrido? Você acha que a juventude ainda estaria se conectando com as ideias dele?
Jotabê – Não gosto de fazer exercícios de futurologia, mas o que Raul dizia para a juventude é algo que faz sentido absoluto nos dias de hoje. Canções que falam de militarismo (Como Mamãe já Dizia), de consumo (Ouro de Tolo), de esperança (Tente outra vez). Todas suas músicas têm lugar e fazem sentido no Brasil de 2019.

Lançamento da biografia de Raul Seixas
Quando: amanhã, 24, às 17 horas
Onde: Cantinho do Frango (rua Torres Câmara, 71 – Aldeota)
Preço do livro: R$ 69,90
Entrada gratuita
Outras Inf.: 3224 6112

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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