Adoniran Barbosa no Viaduto do Chá

Adoniran Barbosa foi um compositor curioso. Seu jeito cômico, o linguajar marcante, a voz grave de fumante inveterado o identificam com um cara engraçado de sambas bem humorados. Mas suas músicas tinham muito pouco humor. Pelo contrário, o forte de sua obra estava em canções densas sobre o dia a dia das camadas mais populares que se espremem em trens, bebem em botequins e se mantém acordados com aquele café quente tomado na beira do balcão. É um Brasil bem real que não tem onde morar, convive com violências e descaso do poder público. Observe: a mesma Elis Regina que encheu Tiro Ao Álvaro de alegria, num insuperável dueto com o autor, também deu a medida exata de tristeza para Saudosa Maloca.

Nascido João Rubinato há 110 anos, o paulista de Campinas tinha jeito simples, gozava de certo prestígio no mundo do samba, mas ainda há dúvida sobre o tom exato de sua obra. Talvez por isso ele seja inesquecível. Para encontrar esse tom é preciso ouvir muitas vezes. Em vida, Adoniram gravou pouco e o filé de sua obra é um disco de duetos feito para dar uma levantada na carreira daquele sambista que nunca foi afeito aos negócios da música – como muitos dos seus pares, como Cartola, Nelson Cavaquinho e por aí vai.

No entanto, eventualmente, ainda surgem obras inéditas deixadas em alguma gaveta do compositor de Trem das Onze. Onze delas, inclusive, acabam de ganhar vida numa homenagem feita pelo Spotify. O tributo, que reúne alguns nomes de diferentes quilates, ganhou o nome de Onze. Exclusivo do serviço de streaming, o projeto foi criado pela DaHouse Audio com curadoria do Coala.Lab, e faz uma mistura de sons. Tem r&b, rock, toada e até samba. Segue um faixa a faixa:

1. Bares da Vida – a homenagem começa com um autêntico samba na voz de Zeca Baleiro, bem ao estilo do homenageado. Dor de cotovelo, boemia e cenários paulistanos. Uma crônica popular costurada pelas rimas típicas de Adoniran.

2. Careca Velha – ressuscitado para a nossa alegria, Di Melo dá voz a uma letra que enfileira as desventuras de um pescador sem sorte. Segue a linha da anterior: Adoniram em sua excelência.

3. Como era bom – Illy canta com doçura um samba nostálgico. “Como era um bom um samba natural, samba espontâneo e sensacional. Samba de tantos, samba era apego, samba era assunto, samba era emprego”. Se Adoniran morreu em 1982, imagina o que ele diria se visse tudo o que houve com o samba nas décadas seguintes. Curiosamente, é a primeira faixa do tributo que começa a experimentar, com sopros, cordas, beats e efeitos. Mas tudo com muita classe, respeito e originalidade.

4. Bolso de Fora – um dos melhores compositores dos últimos anos, Rubel coloca seus sussurros numa faixa que brinca com os novos tempos a partir das vestimentas. Mas, em se tratando de Adoniran, a roupa é um mote pra falar da vida urbana entre assaltos e violências. Os detalhes de piano elétrico e trompete chamam atenção num arranjo cheio de sutilezas.

5. A Partida – sob o nome de Àvuà, Jota Pe e Bruna Black fazem muito bonito numa canção de amor. Bruna tem agudos super afiados, mas sem exageros. Jota Pe vem num grave macio e confortável. O jogo de vozes, sob uma base de efeitos eletrônicos, moderniza Adoniran com beleza e respeito.

6. Debaixo da Ponte – o cantor e compositor pernambucano Filipe Barros, que assina como Barro, não tem muitos recursos vocais. Mas o ritmo cheio de influências nortistas, a sinceridade e a letra forte garantem uma boa faixa. Matéria prima recorrente na obra de Adoniran, são as injustiças sociais que mandam a mensagem. “Quem podia dar um jeito prometeu e foi eleito. Esqueceu, votamos mal. Tamo ferrado, bem feito”, diz a letra mais atual do que nunca.

7. Vaso Quebrado – samba funk ritmado com letra pouco inspirada. Mas a voz é de Elza Soares, que segue jorrando ouro da garganta. Dramática e forte, ela salva uma canção que poderia acabar esquecida numa gaveta.

8. Feira Livre – Amanda Pacífico se solta num samba típico de Adoniran. Cheias de sons ao fundo, o passeio pela feira começa de manhã cedo. O arranjo vai ganhando forma, os instrumentos vão entrando à medida que mais clientes vão se aproximando das barraquinhas. Não sei se a intenção era essa, mas o verso “uma coisa proibida é ficar passando a mão”, cantado – e bem – por uma mulher acaba ganhando novos significados.

9. Bebemorando – a banda multiétnica Francisco El Hombre leva a sério a letra divertidíssima deste samba que eleva a bebida ao seu posto de grande agregador social. Dois trechos: “O beber é uma arte, o saber uma ciência”. E “Tim tim tim tim tim tim para sempre ad infinitum e de noite, que alegria, tomo um gole ad libitum”.

10. Dias de Festa – mais um passeio pela São Paulo de Adoniran. Os bairros, os costumes, as festas que ele conheceu e circulou. Luê coloca teatralidade numa faixa cheia de recursos sonoros. Tem samba, toada e encerra em tom dramático.

11. A Escola – vocalista da banda Dônica, Zé Ibarra encerra a homenagem em tom íntimo. Violão, trompete, acordeom, detalhes  de percussão e uma voz bem colocada contam a história – em primeira pessoa – de um menino em busca de suas memórias. A escola como ambiente de encontro, brincadeira e crescimento. Não parece com Adoniran, o que prova o quanto ele podia ser grandioso. Belíssima faixa.

About the Author

Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

View All Articles