Foto: Leo Aversa/ Divulgação

Na última sexta-feira, 18, Adriana Calcanhotto lançou nas plataformas digitais o single 2 de junho. Apresentada pela primeira vez na turnê Um show só, transmitida em setembro, a canção fala de um episódio recente do Brasil. Foi em 2 de junho deste ano que o pequeno Miguel Otávio Santana da Silva, de 5 anos, morreu ao cair de um prédio luxuoso do Recife. Ele havia sido deixado aos cuidados de Sari Corte Real, primeira-dama do município pernambucano de Tamandaré, enquanto sua mãe, a empregada doméstica Mirtes Renata Santana de Souza, levava os cachorros da patroa para passear. Ajudado por Sari, Miguel pegou o elevador até o 9º andar e de lá caiu.

“Levei o mês de agosto inteiro escrevendo essa. Nunca uma canção foi tão dura de ser feita pra mim, nunca tive esse tipo de emoções e sentimentos durante uma composição. Ao mesmo tempo, não consegui não fazê-la, e senti muita raiva do que estava escrevendo”, comenta Calcanhotto em material enviado à imprensa. Sua raiva, inclusive, é a de muitos, ecoa em quem vê nessa história uma série de injustiças que fazem uma infinidade de vítimas diariamente.

“Trinta e cinco metros de voo, do nono andar. Cinquenta e nove segundos antes de sua mãe voltar. O destino de Ícaro, o sangue de preto, as asas de ar”, descreve Calcanhotto sem preocupação com métrica ou rima. A composição me fez lembrar um caso histórico, registrado é livros, o do estudante secundarista Édson Luiz de Lima Souto. Ele era uma das 300 pessoas que almoçava no restaurante universitário do Rio de Janeiro, apelidado de Calabouço, quando, em 28 de março de 1968, a polícia invadiu o local atirando sob pretexto de uma suposta invasão à embaixada dos Estados Unidos. Um tiro no peito matou Edson, que teve seu corpo carregado pelas ruas do Rio de Janeiro como símbolo da agressividade sistemática da ditadura brasileira.

Milton Nascimento registrou a história na canção Menino, do disco Geraes (1976). “Quem cala sobre teu corpo consente na tua morte”, avisa o cantor logo na primeira frase. Não há espaço para calar sobre tal episódio. Quatro anos depois de Milton, Elis Regina voltaria a essa memória no show Saudades do Brasil. Das riquezas nacionais, passando pelo humor frio com que enfrentamos nossos medos, até a morte do estudante paraense, de 17 anos, encarado como uma ameaça à nação, ela costurou a história nacional numa série de alegorias.

Menino estava no repertório. Mas, antes dele, Elis trouxe os versos trágicos e arrasadores de Onze Fitas: “Quantas vezes se leu só nessa semana essa história contada assim por cima. A verdade não rima”. Composta para a peça Dia da Caça, de José Louzeiro, a composição de Fátima Guedes dá a medida exata das muitas vítimas da sociedade, seja ou não tempos de ditadura. “Não fosse a vez daquele, outro ia”, segue Fátima mostrando a banalidade com que se vão essas vítimas.

Em textos diretos e sem preocupação poética, como o 2 de junho de Adriana Calcanhotto, ou no texto metonímico de Calabouço, homenagem de Sérgio Ricardo a Édson Luiz, e até no conselho sóbrio de Menino, a arte cresce quando mostra que pode ser relevante para a sociedade.

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Marcos Sampaio

Jornalista formado pela Universidade de Fortaleza e observador curioso da produção musical brasileira. Colecionador de discos e biografias. Admirador das grandes vozes brasileiras.

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