Para o cientista social Ricardo Braga, “a escola é um baú de muitas dores”. É preciso, portanto, construir uma escola acolhedora para estudantes LGBT.

 

Estudantes LGBT consideram a escola como um ambiente de acolhimento? Para certo estudante gay paulista de 17 anos, a resposta é não. Isso porque ele relata o seguinte: “Os estudantes LGBT precisam ser tratados como são os estudantes heterossexuais. Não queremos ser tratados de maneira privilegiada, nem queremos ser melhores que os outros. Queremos direitos como qualquer outro cidadão. É preciso fazer isso logo, o mundo não percebe, mas somos tão humanos quanto os outros, porém estamos morrendo. O preconceito está nos matando. A cada vez que você ofende uma pessoa LGBT, o seu senso de valor é destruído. […]”.

Esse depoimento foi coletado na Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil (2016), realizada com a participação de 1.016 estudantes com entre 13 e 21 anos de idade de todas as regiões do país. A pesquisa analisou as experiências de adolescentes e jovens lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBT) relacionadas a sua orientação sexual e/ou identidade/expressão de gênero.

De acordo com a Constituição, é direito de todas as crianças e jovens frequentarem a escola. Porém, estar dentro da sala de aula não necessariamente significa fazer parte do processo educativo, tampouco sentir acolhido por quem deveria estar cumprindo a função de educar e cuidar. A pesquisa da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) mostra que quase inexiste uma escola acolhedora para estudantes LGBT e escancara essa falta de apoio tanto das instituições educacionais quanto das famílias diante de situações de conflito pelas quais eles passam

Escola: lugar de aprendizado ou de medo?

Como promover esse desenvolvimento se a escola se torna, para o cientista social Ricardo Braga e pesquisador do Grupo Gênero, Corpo e Sexualidade (GCS), “um lugar de muita dor” para muitos jovens, principalmente os jovens LGBT?

Essa sensação é explicada por números. A pesquisa traz os seguintes dados:

  • 73% dos jovens ouvidos foram agredidos/as verbalmente por causa de sua orientação sexual;
  • 27% dos/das estudantes LGBT foram agredidos/as fisicamente por causa de sua orientação sexual;
  • 56% dos/das estudantes LGBT foram assediados/as sexualmente na escola.
Ricardo Braga, cientista social

Ricardo estuda a relação entre escola/estudantes na questão de gênero e sexualidade.

Essas situações continuam geração após geração porque a escola não se coloca na função de reconhecer a existência desses estudantes LGBT e acaba reforçando a ideia de que o estudante que tem uma orientação sexual e identidade de gênero, fora dos padrões hegemônicos do gênero da sexualidade, está errado. Essa ideologia de exclusão comum fora da escola acaba sendo reproduzida também dentro dos seus muros.

Para Ricardo Braga, que é também mestre e doutorando em Antropologia Social, as crianças são obrigadas a reproduzir padrões no ambiente escolar, sem entender o porquê, mas sabendo que se não o fizer estarão fora da “linha da normalidade”. “A gente traça uma linha da normalidade e diz o que é normal, convencional e o que não é. E aqueles que estão fora da linha da normalidade também estão fora da linha da própria humanidade. A gente cria corpos normalizados e cria corpos abjetos, desumanos, monstruosos, a partir da escola e passa a produzir o/a menino/a de verdade, em relação à identidade de gênero”, reflete.

Estudantes LGBT, os “excluídos no interior”

Essa definição de “normal” para as escolas cria um abismo entre o real significado da escola e o que ela de fato representa. A escola, portanto, perde o seu sentido. Isso porque, além de não terem uma Educação que o construa socialmente, eles passam por sofrimento, humilhação, invisibilização e falta de reconhecimento. “A gente tem que pensar numa escola para não ser lembrada pela dor, pelo sofrimento; para que essas crianças que estão hoje na escola, daqui a 20 anos, se lembrem da escola como lugar includente, democrático, aberto, que considera todas as vivências, esse é um espaço extremamente importante”, comenta Ricardo.

Essa série de infortúnios pelos quais os estudantes LGBT passam se assemelha a um fenômeno estudado pelo sociólogo Pierre Bourdieu: os “excluídos no interior”. Como explica o cientista social Ricardo, “eles estão dentro [da escola] mas não tomam parte das benesses da Educação por conta do tipo de acesso que possuem”.

Para Ricardo, “isso acontece exatamente porque fazem questão de não reconhecer sua diferença”, pois “a cisgeneridade e a heterossexualidade são regimes políticos, são instrumentos que funcionam como manutenção de um poder – sobretudo fundado no homem. A escola é uma instituição que serve pra manter essa ideia”.

Por que a escola não é acolhedora?

Esse não reconhecimento gera situações constrangedoras para o aluno que vão reverberar por toda a sua vida. A “criança afeminada” ou a “menina machinho” sofrem diariamente com agressões verbais e/ou físicas bullying, falta de atenção dos pais e descaso dos professores.

“E quando isso acontece”, diz Ricardo, “a escola não está nem aí,  os professores não estão nem aí. Isso porque o jovem LGBT tem que sofrer como um processo de correção, para que eles tenham uma identidade de gênero e orientação sexual conforme os modelos hegemônicos determinam”. A pesquisa aponta que 36% dos/das respondentes acreditaram que foi “ineficaz” a resposta dos/das profissionais para impedir as agressões. Isso mostra o quanto os educadores precisam melhor na tratativa do tema.

No entanto, essa melhoria no zelo por alunos LGBT vai muito além de uma vontade de gestores escolares. A escola como vemos hoje, excludente e desigual, faz parte de, segundo o cientista social, “um projeto de manutenção poder”, que reforça o ideal cisgênero/heterossexual como natural e mantém o tema como tabu, para que não seja tratado.

“Manto da neutralidade”

Isso tem a ver com o que o especialista chama de “manto da neutralidade”. Essa teoria diz que na escola todos são iguais, não havendo “melhor” nem “pior”. No entanto, essa concepção acaba reforçando ainda mais as desigualdades e invisibilizando quem precisa de apoio.

“A partir do momento que a escola diz tratar todos iguais, ela tende a reproduzir os privilégios daqueles que os têm. Fenômeno similar ao do racismo, que, quando o negamos e tentamos fazer passar a ideia de que todos são iguais, apagamos ainda mais as existências subalternas”, explica Ricardo Braga.

Outro ponto diz respeito à própria formação dos professores. Além de não serem formados com disciplinas que discutem temas sociais, poucas são as escolas que têm formações ou uma política de incentivo ao acolhimento. A pesquisa da ABGLT indica que apenas 8,3% dos/das estudantes afirmaram que o regulamento da escola tinha alguma disposição sobre orientação sexual, identidade/expressão de gênero.

Além disso, os educadores também acabam levando para a escola suas próprias visões de mundo, muitas vezes pautada pela religião ou concepções morais próprias. Esse fator resulta em uma exclusão e falta de preparo para compreender fenômenos sociais como a homofobia, o racismo, a misoginia etc.

Entre avanços e retrocessos

No governo Lula (2003-2010), houve a construção de uma agenda anti-homofobia, a exemplo do programa “Brasil sem homofobia”, que tinha o objetivo de promover a cidadania e os direitos humanos da comunidade LGBT, a partir da equiparação de direitos e do combate à violência e à discriminação; da Secretaria de Educação a Distância, Alfabetização e Diversidade, vinculada ao Ministério da Educação; e do programa Gênero e Diversidade na Escola, no qual professores de todo o país recebiam qualificações para tratar da questão da diversidade.

No entanto, no decorrer dos anos e com o passar das gestões federais, essas políticas foram sendo esvaziadas e o tema voltou a tornar-se tabu em Brasília. Uma das polêmicas mais recentes girou em torno da Base Nacional Comum Curricular (BNCC).

O documento indica as diretrizes para a construção dos currículos de rede e escolas de todo o país, atendendo às necessidades e especificidades de cada região e buscando englobar diversos aspectos sociais. Entretanto, em sua última versão, os termos “gênero” e “orientação sexual” foram retirados. O episódio foi considerado uma vitória para a bancada evangélica no Congresso.

À época, muitas foram as críticas. A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) disse, em nota, que a exclusão dos termos “além de ferir a constituição federal, vai contra todos os debates realizados durante os últimos anos nos espaços constituídos de forma democrática”. Até o Alto Comissariado de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) se posicionou contrário à medida.

O ato de abolir tais palavras dos documentos oficiais, apontam especialistas, significa um retrocesso na abordagem das questões de gênero e sexualidade e contribui ainda mais para o fortalecimento de estereótipos, para as práticas de violência dentro e fora do ambiente escolar e para a perpetuação da LGBTfobia.

Caminhos para transformar essa escola

Esses dados corroboram o depoimento do estudante paulista e de tantos outros de que a escola não é um ambiente acolhedor para estudantes LGBT. Segundo especialistas, ela só se tornará acolhedora caso passe por uma transformação, que vai desde a construção de um novo currículo ao investimento em ações que promovam a diversidade sexual.

Para o cientista social Ricardo Braga, “a escola tem um papel extremamente importante na conformidade de biografias das pessoas que por ela passam e no desenvolvimento cognitivo, emocional, afetivo, social das crianças e jovens”.

O primeiro passo é tornar natural a existência, na escola, de outras formas de ser na sociedade, não trazendo para o centro das atenções apenas uma vez ao ano, mas sim cumprindo uma agenda perene que lute contra o preconceito no dia a dia.

“Dessa forma, a construção de uma escola plural e includente, que recebe e dialoga com os vários atores sociais que a compõem, passa necessariamente pela reformulação estrutural de todo um sistema ideológico que, direta ou indiretamente, edifica as nossas instituições sociais, como a escola”, sugere o cientista social.

Já há muitos anos discute-se acerca de uma grande reforma educacional. Embora tenha se abstido do assunto, a BNCC veio justamente para sugerir essa transformação. Mas ainda não é suficiente. É preciso transformar o modelo de educação existente, oriundo de séculos passados, para que as crianças e jovens não reproduzam mais práticas preconceituosas de hoje. A escola precisa ser pensada como um lugar de inclusão e de acolhimento para os estudantes LGBT para que, enfim, cumpra a sua função social.

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Eduardo Siqueira

Um jornalista que ama Educação. Minhas experiências me fizeram imergir no universo da Educação, sentindo todo o seu poder transformador e percebendo o quanto ela ainda precisa de apoio. Aqui, busco fazer minha parte e ajudar as pessoas a compreendê-la nem que seja um cadinho.

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