Por Wanderson Trindade
(wandersontrindade@opovo.com.br)

(Foto: Fernanda Liberti)

Foi Carnaval. Bateu na porta, aguardou pela sua abertura e entrou na vida de foliões do País inteiro. Com ele, veio acompanhada a esperança dos brasileiros de “expurgar seus demônios”, os quais assolam o povo por durante o resto do ano. Isso é o que diz acreditar a cantora Mel Gonçalves, que esteve em Fortaleza no último mês, quando conversou com o Blog Repórter Entre Linhas sobre Carnaval, assédio, medo e incertezas do futuro.

A artista é ex-integrante da Banda Uó, grupo que misturava o pop com o brega em suas canções, tendo realizado sua última apresentação na Capital no dia 2 de dezembro de 2017. De lá pra cá, uma obviedade: muita coisa mudou – mas nem tanto. Mulher trans, Mel relata a necessidade de hastear bandeiras que ficaram guardadas em gavetas e armários ao longo dos últimos mais de 500 anos de Brasil.

Uma dessas bandeiras é a luta contra o assédio, prática a qual passou a ser classificada como crime durante o Carnaval deste ano. “Assédio é crime e já faz tempo que é. Ele mata, corrompe, diminui a autoestima das mulheres. Faz com que a gente se sinta objeto e reafirma o lugar do machismo nas nossas vidas. Então é mais do que necessário que ele seja tipificado como crime”, afirma a artista. “Mas ainda faltam muitas questões a serem debatidas”.

Questão fundamental, segundo ela, seria dar voz às próprias mulheres que passam por episódios de violência, para não “revitimilizá-las”. “Você trazer a mulher para um ambiente de quatro paredes brancas, com um homem sentado questionando o que foi e o que não foi assédio, é mais uma vez ela estar sendo assediada. Só que dessa vez moralmente”, diz a cantora.

Mel também é apresentadora do programa Estação Plural, da TV Brasil – ou pelo menos foi. Com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da República, juntamente com sua visão sobre as causas sociais ligadas às minorias, Mel Gonçalves declara que o programa “provavelmente não vai voltar acontecer”. “No Governo que a gente está é bem complicado. Nele a pasta LGBT nem existe, não tem crédito, nem credibilidade alguma. Ela perdeu sua razão de existir. É provável que a gente não faça (o programa Estação Plural), mesmo apesar dos contratos estarem assinados”, explica.

De acordo com dados da ONG Transgender Europe (TGEU), divulgados em novembro último, o País continua sendo o que mais mata pessoas transexuais no mundo. Para Mel, no entanto, a temeridade cria unidades que servem para rasgar o grito da dor sofrida por este público, muitas vezes “alvo preferencial” de uma sociedade cuja formação é apontada como machista.

“Para nós é só mais uma visibilidade. Mas é o que dá mais raiva, porque queremos resolver logo isso. A vida é urgente. Eu não tenho mais medo de viver, nem de sair, fazer minhas coisas. Mas tenho medo do futuro continuar como está sendo o presente. Meu medo é só de as coisas continuarem do jeito que estão”, enfatiza a artista, que realizou apresentação no Órbita Bar no último dia de pré-Carnaval em Fortaleza, em de 23 fevereiro.

Confira entrevista completa

O tema do Carnaval 2019 de Fortaleza foi “Liberdade que faz brilhar nossa alegria”. Para você, qual a importância da liberdade para ter a alegria?

(Foto: Fernanda Liberti)

O Carnaval é o momento da gente expurgar nossos demônios, porque o ano inteiro é o brasileiro sofrendo, tendo um milhão de notícias ruins, como má educação, salários péssimos, desemprego. Vejo o Carnaval como uma forma de respiro para todo mundo. Mas para tratar a alegria junto com liberdade, a gente ainda precisa resolver muitas coisas para ser alegre de fato, porque não pode durar só na época carnavalesca. Tem de se estender para todo o ano e para a vida inteira.

Se a gente conseguisse ver o Carnaval do lado de fora, ia vê o quanto as pessoas estão desesperadas por liberdade. Para a gente conquistar liberdade com alegria é preciso não ter medo, porque essa ainda é uma grande questão para a população LGBT, para as mulheres cis e trans, para a população periférica. A gente convive ainda muito com o medo. Então o Carnaval dá uma distraída nos problemas reais.

Neste ano, pela primeira vez o assédio será tipificado como crime. Essa medida é mais um avanço ou ela apenas mostra que a gente ainda está muito atrasado?

Assédio é crime e já faz tempo que é. Ele mata, corrompe, diminui a autoestima das mulheres. Faz com que a gente se sinta objeto e reafirma o lugar do machismo nas nossas vidas. Então é mais do que necessário que ele seja tipificado como crime, mas ainda faltam muitas questões a serem debatidas. Se ele é tido como crime, quais são as caraterísticas para que ele seja tipificado como crime? Aí a gente para para pensar: quais e quantos tipos de assédio existem? Tem um milhão de tipos de assédio seja moral seja físico.

Todos esses tipos de criminalização são válidas. Mas a gente precisa dar voz às mulheres, mais mesmo do que criminalizar essas questões. Daí não adianta ter uma criminalização de algo que fere a nossa existência se as pessoas não atentarem a de fato colocá-la em prática. Eu tenho medo dessas questões de criminalizar coisas, se elas não fizerem sentido. Espero que a criminalização do assédio faça sentido e também ouça as mulheres que são atingidas por essa prática. Não é só revitimilizá-la, porque você trazer a mulher para um ambiente de quatro paredes brancas com um homem sentado questionando o que foi e o que não foi assédio, acho que é mais uma vez ela estar sendo assediada, mas só que dessa vez moralmente.

Colocar-se em caixinhas dizendo que é mulher, que é trans, que defende a causa LGBT, a causa negra, acaba sendo limitador para tratar as mais diversas questões?

Eu não acho que isso seja limitador. Acho que as pessoas estão acostumadas a ouvir sobre, por exemplo, uma democracia racial que não existe. É uma grande mentira. Não é verdade? Assim como a democracia de gênero. Então eu acho válido que a gente faça nossas intersecções para todo mundo ter acesso, para todas as mulheres poderem falar sobre suas questões, assim como os homens possam falar das suas masculinidades. Então é importante sim que a gente discuta esses assuntos. As pessoas vão chiar e achar chato. Até eu às vezes falo “pô, gente, que chato”, mas é muito necessário que se fale, pois há muitas dores guardadas embaixo desses 500 anos de Brasil escravizado, feito por meio do estupro e dessa democracia mentirosa.

Quais são suas referências no mundo Trans?

As minhas referências foram a Lea T, Marsha P. Johnson… Ai, é muito difícil falar de referências porque a gente esquece quando nos perguntam (risos). Mas tem muita gente que eu admiro para além de pessoas trans como o João Trevisan que para mim é a grande fonte da história gay do nosso País. Ele foi um dos mentores do “Lampião da Esquina”, que foi o primeiro jornal LGBT do Brasil.

Fefito, Ellen Oléria e Mel comandam o Estação Plural

Em relação a ocupar espaços, como está sua situação na TV Brasil, com o programa Estação Plural?

Eu assinei um contrato em 2018 para fazer a terceira temporada do Estação Plural neste ano, que não aconteceu até agora. Provavelmente não vai acontecer, porque no Governo que a gente está agora é bem complicado. Nele a pasta LGBT nem existe, não tem crédito, nem credibilidade alguma. Ela perdeu sua razão de existir. É provável que a gente não faça mesmo apesar dos contratos estarem assinados.

Você já falou em entrevista que, em relação ao futuro, daqui a dez anos, espera pelo menos estar viva. Disse isso levando em consideração os dados de violência que estaria suscetível a sofrer por ser um alvo “mais visado” na sociedade brasileira. O quão essa questão de não saber se vai estar viva no próximo dia atrapalha sonhar?

Olha que engraçado, essa pergunta eu não sei responder, não. Mas eu acho que, como a gente lida com o medo todos os dias, essa pode ser uma questão mais pluralizada. Todo mundo tem medo. As mulheres, por exemplo, têm medo de saírem sozinhas. Eu tenho medo sim. Temo, mas não é um temor que me deixa parada. É um temor que me deixa com raiva. E essa raiva movimenta a gente. O susto deixa a gente paralisada, naquela coisa que te deixa envolvida na tristeza, no lamento.

Mas no momento o que nos movimenta tem sido a raiva e pela primeira vez temos visto tudo vim à tona. Todas as questões das travestis, das pessoas trans estão vindo à tona, os números estão vindo à tona.

Sendo goiana, você já sofreu alguma vez em sua carreira artística algum tipo de preconceito por não cantar sertanejo?

Mas eu cantava sertanejo. Tinha Cowboy… Aquelas (risos). É uma música da Banda Uó que a gente fez questão de fazer para ter dentro de nosso repertório para trazer a raiz da banda. Era um brega, mas hoje o sertanejo tá misturando tudo: tem funknejo, forrónejo. Mas também nunca foi uma questão, até porque é um meio tão preconceituoso que eu acho que, se eu cantasse, não teria uma visibilidade como tenho hoje.

A gente ainda está lá nas mulheres cis fazendo a abertura dos caminhos no sertanejo. Mas nunca sofri não, pois eu sempre fiz parte do nicho alternativo, sempre fui da galera que está produzindo coisas novas. Essa cobrança não teve, mas agora estou pensando: “será que eu venho com uma música sertaneja para abalar com esse País?” (risos). Brincadeira… Vamos deixar para quem já está fazendo, que eu fico fazendo coisas diferentes.

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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