(Foto: Buzina de Imagem)

Escritor, jornalista e instrutor de escrita, Fábio M. Barreto tem muito a dizer. Autor de “Filhos do Fim do Mundo” (2013) e “Snowglobe” (2019), o escritor celebra o Prêmio LeBlanc 2020 (UFRJ/UVA) de Melhor Romance de Literatura Fantástica pelo livro mais recente.

Agora, ele prepara o terceiro romance de ficção científica, que será lançado pela AVEC Editora, conforme o Blog adiantou. Em entrevista exclusiva, Barreto fala sobre a relação com a ficção especulativa – tão presente na sua obra literária -, mercado editorial, escrita criativa e revela planos sobre próximos trabalhos. Confira!

Fora da Ordem: Viagem no tempo é talvez o principal tema de “Snowglobe“. Como surgiu a ideia do livro?

Fábio M. Barreto: A viagem no tempo faz as vezes de pano de fundo para “Snowglobe” e ajuda o verdadeiro tema a surgir: manipulação de informação e pessoas. A ideia surgiu há quase 15 anos e continuou atual ao longo das décadas, afinal, a sociedade humana parece sempre estar em conflito com os limites entre verdade e mentira. Pelo lado mais factual, eu estava lendo Isaac Asimov, num fim de semana no qual me isolei apenas para ler, e comecei a pensar nos aspectos da manipulação. Imediatamente, a ideia de um cientista brasileiro envolvido diretamente no projeto surgiu, porém, eu nem sonhava em ser escritor e a ideia ficou guardada por muitos anos.

Pelo lado profissional, quando comecei a escrever, defini um objetivo claro: abordaria os principais pilares da ficção científica com o intuito de atrair novos leitores e deixar minha marca nesses temas. Então, comecei com apocalipse (“Filhos do Fim do Mundo“), trabalhei com viagem no tempo (“Snowglobe“) e o próximo passo é explorar o espaço e a expansão humana pela galáxia. Eu queria ter feito tudo isso em 5 anos, mas a realidade editorial do Brasil impediu qualquer avanço e, agora, parto para a última parte desse salvo inicial.

FDO: A ficção científica é feita olhando para trás. Que referências permearam seu imaginário nos processos que resultaram em “Snowglobe“?

Barreto: Olhando para trás ou antecipando o que está por vir. Muito da tecnologia envolvida em “Snowglobe” é baseada em projetos e tendências que vemos hoje, então, a exemplo de Star Trek (que é uma ficção-cientícia de projeção), tentei imaginar os próximos passos da realidade aumentada, da conexão e imersão total e os efeitos disso no ser humano. Numa das versões não publicadas, por exemplo, eu trabalhava o conceito de entregas 100% feitas por drones, mas as implicações começaram a confundir a história e deixei de fora.

A tecnologia está aí para ser usada, imaginada e redefinida, então vejo a FC contemporânea como um reflexo mais predominante disso, não do passado. O iReality pode ser facilmente comparado ao Oasis, de Ernest Cline, porém, como imaginei antes de conhecer “Jogador Número 1“, imagino que Ernest e eu tenhamos bebido da mesma fonte, o tal inconsciente coletivo, ou apenas se importado com um mesmo aspecto tecnológico. Ele foi bem longe, eu fiquei mais pé no chão. Vamos ver quem acertou.

Em termos de referências, o filme “Surrogates“, com Bruce Willis, teve um papel importante, assim como a obra de Philip K. Dick no geral, e os preceitos de Asimov. Não existe um ponto definido nesse aspecto, existe uma miríade de ideias e provocações acumulada ao longo dos anos e que resultou em “Snowglobe“. E, óbvio, “A Máquina do Tempo“, de HG Wells, precisa ser citada, afinal de contas, levar aquela viagem inicial em conta é fundamental, tanto para evitá-la quanto para referenciá-la. Uma coisa mais moderna que afetou uma decisão específica foi “De Volta para o Futuro“, pois a data da primeira viagem de Marty McFly foi importante para uma das decisões mais chave do livro: “Snowglobe” fala sobre viagem no tempo, mas não tem datas. Não quero que, um dia, a história “fique para trás”. Até a sociedade chegar lá, “Snowglobe” sempre pode se tornar realidade.

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FDO: Você começou a escrever o livro com um prazo de três meses, o que me parece um pouco apertado para concluir um romance. Como foi esse processo?

Barreto: Como disse, “Snowglobe” foi um processo de décadas e vários momentos da minha vida. Eu havia desistido do projeto e ele descansava na gaveta quando uma proposta não-concluída de publicação por editora me chamou a atenção: há interesse pela história. Então, a decisão foi a seguinte: em vez de voltar a planejar, estruturar e sonhar, vou escrever o mais rápido possível.

Para quebrar a meus próprios mecanismos de procrastinação e garantir a conclusão do projeto (que, àquele ponto, já teve umas 13 versões), anunciei a data de lançamento publicamente, iniciei a pré-venda e comecei a fazer. Os três meses foram viáveis por conta de alguns elementos importantes: contratei um editor, que ia trabalhando nos capítulos assim que eram concluídos; e um capista, que iniciou o trabalho até antes disso; e a minha experiência tanto com a história quanto com a escrita de narrativa comercial.

Eu coloquei esse monstrinho para caminhar simultaneamente enquanto escrevia até 12h por dia com foco total. Foi peculiar, mas não tão apertado. Haviam condições para permitir essa janela de produção. Também aproveitei para colocar em prática — e demonstrar — tudo que ensino como instrutor de escrita criativa na plataforma www.escrevasuahistoria.net. Também é preciso levar em conta que é um romance relativamente curto, com menos de 85 mil palavras, e que estava desenvolvido e pronto para ser escrito. Sem esse trabalho de desenvolvimento prévio, teria sido impossível. Eu repetiria a dose, porém, traria um editor adicional e aumentaria pelo menos mais um mês na produção para poder identificar mais problemas e não me arrepender de nada.

FDO: Passados os três meses, é possível dizer o quanto mudou na edição?

Barreto: Praticamente nada, à exceção de uma cena que envolvia estupro e alguns temas mais complicados, a história foi publicada do mesmo modo que foi concebida para esse processo de três meses. Talvez, a relação entre as personagens Becca e Blake tenha sido influenciada por conversas com Sol Coelho (que editou o livro), mas, fora disso, foi um tiro só do começo ao fim.

(Foto: Buzina de Imagem)

FDO: “Snowglobe” foi eleito Melhor Romance de Literatura Fantástica no Prêmio LeBlanc 2020 (UFRJ/UVA). Seu romance de estreia, “Filhos do Fim do Mundo“, venceu o prêmio Argos de Ficção Especulativa. O que essas vitórias sinalizam?

Barreto: Elas sinalizam que há espaço para estilos diferentes do praticado no Brasil e a linguagem mais declaradamente comercial que utilizo, sem virar clichê ou irritar o leitor. Também venci o Argos com a novela “A Última Balada de Bernardo“, que foi feita nos mesmos moldes. Tenho uma visão muito peculiar do modo como a escrita deve ser levada, bem, a minha escrita, e a aplico em diversos gêneros e públicos. Fui treinado em narrativa em Los Angeles, tanto no cinema quanto na literatura, e trago essa bagagem aliada à temática nacional. É um formato promissor e as premiações, de certa forma, apoiam a teoria.

Pessoalmente, fico feliz por encontrar apoio dos leitores locais a uma tentativa, a meu ver, muito arriscada e única no mercado literário brasileiro. É tão única que é muito difícil convencer editoras tradicionais a apoiá-la, é como se eu fosse Terry Gilliam: todo mundo gosta do meu trabalho anterior, mas não acredita o suficiente no próximo, até eu fazer sozinho e mostrar os resultados.

FDO: O prêmio Jabuti causou certo rebuliço ao criar uma categoria para romance de entretenimento. Como você viu essa novidade?

Barreto: Gostei, tanto que “Snowglobe” está oficialmente inscrito e espero ficar entre os 10 finalistas. Sonhar não custa nada, não é? O entretenimento é fundamental na literatura atual, então qual o problema em analisá-lo pelo que é, em vez de defenestrar autores comerciais por escreverem pelas regras e objetivos do setor? A separação é polêmica e o contra-argumento é que exista um preconceito com o comercial.

Bem, não fosse por essa categoria, eu não teria nenhuma esperança de ficar bem classificado no Jabuti. São livros diferentes, com objetivos e regras diferentes, para públicos diferentes, eu vejo como algo positivo. E, se não for, o tempo se encarregará de corrigir o rumo e ser justo com todos. Mudanças podem ser boas, é preciso considerar as alternativas e arriscar um pouco, em vez de querer manter algo que, por si, já era excludente. O escritor brasileiro precisa ganhar dinheiro escrevendo e o nome disso é literatura comercial. É preciso haver espaço para o próximo Suassuna e para o nosso Dan Brown, ao mesmo tempo.

FDO: Nas redes sociais você já falou que tinha uma relação um tanto controversa com “Filhos do Fim do Mundo“. O que aconteceu?

Barreto: Por anos, a editora descumpriu contrato, não pagou direitos autorais e não é honesta em relação aos poucos relatórios de vendas apresentados. Fica difícil rejeitar a própria obra, mas não era certo continuar incentivando a venda de um produto que só beneficiava um lado da equação. Daí a relação complicada, fui forçado a renegar um livro tão importante na minha vida. Mas deixei isso para lá e aceitei o prejuízo. Meus esforços foram em vão, então agora vou pensar no leitor.

FDO: É verdade que você chegou a pensar em reescrever o livro? Por quê?

Barreto: Ah, estou fazendo isso. Já são cinco capítulos prontos. Quero relançar uma versão especial de 10 anos, uma espécie de versão preferida do autor. Alguns elementos foram removidos erroneamente pelo então editor e, para mim, fazem falta. Além de uma atualização necessária para corrigir um erro meu (assumo) em relação à personagem Esposa, recuperarei esses capítulos para criar a edição definitiva. Além disso, “Filhos” foi meu primeiro livro. Evoluí muito como contador de histórias e ele merece um retrabalho com uma visão mais sábia e vivida.

FDO: São sete anos entre os dois romances. O que mudou de lá pra cá?

Barreto: Tudo. “Filhos” foi escrito por um jornalista arriscando-se no mundo da literatura. “Snowglobe” foi escrito por um escritor e instrutor de escrita criativa. Há um mundo de preparação, leitura, cursos, sessões de mentoria, congressos literários, entrevistas com roteiristas, romancistas e diretores de cinema que me formou e deu condições para escrever um romance premiado em três meses e não duvidar, nem um pouco, da habilidade para tal. Ainda estou longe de qualquer medida de perfeição e tal, mas o avanço em relação a 2011 (quando escrevi “Filhos”) é imensurável.

Escrever bem requer dedicação, investimento (de tempo e dinheiro), erros e acertos (mais erros que acertos) e as ferramentas certas para colocar a sua visão no papel. Precisamos quebrar aquela ilusão de que escrita é talento e só talento. Escrever bem envolve muito trabalho duro e tempo. Nada impede uma jovem escritora de acertar cedo, mas por que insistimos em querer sermos exceções, em vez de ter um movimento de capacitação e preparação de autoras e autores que habilite ondas de autores, em vez de eternos sonhadores? Hoje, estou pronto para encarar qualquer desafio com uma editora grande, por exemplo, tanto no Brasil quanto nos EUA (eu escrevo fluentemente em inglês, e poderia publicar em duas línguas, por exemplo, mas as editoras ainda não perceberam as possibilidades rentáveis dessa mistura).

FDO: Quando conversamos pela primeira vez, em 2015, você já trabalhava em “Snowglobe“. O livro só saiu quatro anos depois. Você encontrou problemas para a publicação?

Barreto: Não foram problemas, foi desinteresse total. Apenas uma editora quis, mas exigiram o término da obra para, então, avaliar. Eu não gosto do modelo atual no Brasil, que força o autor a arcar com todo o tempo e risco de redação, para, depois, receber um não por e-mail ou nem isso. Já demonstrei habilidade e comprometimento para entregar qualquer projeto, fui jornalista por 20 anos, sei cumprir um deadline. Mas as realizações anteriores pareciam não contar para nada, então, por esse aspecto, desisti de procurar as editoras tradicionais e deixei “Snowglobe” de lado.

As possibilidades da Amazon KDP, onde já encontrei sucesso com minhas novelas e contos, se mostraram mais acessíveis nesse momento, por isso publiquei por lá. Não tenho problemas com as editoras tradicionais, apenas não encontrei uma que apostasse em mais um projeto arrojado. Aliás, o próximo é tão doido quanto e se me perguntar se tenho dúvidas sobre o sucesso dele, é claro que direi que não. “Snowglobe” está disponível para publicação tradicional e em audiobook, diga-se de passagem. Livros são feitos para chegarem ao leitor e as editoras tradicionais como Companhia das Letras e Intrínseca fazem isso como ninguém.

FDO: Você já trabalha com cursos de escrita criativa há alguns anos. O que você tem aprendido com esses novos escritores?

Barreto: Que há um desejo muito grande de se capacitar; de se diferenciar dos “escritores passageiros”, aqueles que duram poucos meses ou anos; de transformar a escrita em profissão rentável e respeitável como outra qualquer. Ainda hoje somos vistos como privilegiados ou indignos dos frutos do nosso trabalho (afinal, a pirataria ainda rola solta), mas a profissão de escritor merece seu lugar ao sol e retornos financeiros como qualquer outra. Trabalhamos por meses, anos, décadas, para dar vida a histórias que entretêm, ensinam, inspiram e emocionam o leitor, por que não gozamos do mesmo respeito que um “emprego de verdade”? Além de tudo, autores trabalham sem garantia de pagamento no final do processo.

Escrever é perigoso. Mesmo assim, aprendi que a paixão e a vocação da escrita não impedem pessoas de todas as idades, orientações sexuais, credos, endereços e lados políticos buscarem modos de evoluírem e contar grandes histórias, a despeito de serem chacoteados por familiares e até mesmo professores. O ideia de “escrever não é trabalho” já causou muitos danos, aprendi essa lição: isso tem que acabar. Também sei que temos grandes talentos prestes a surgir, o que nos falta é um mercado mais profissional e preparado para receber carreiras, não dependente da eterna busca pelo “sucesso garantido”. Grandes carreiras são construídas, elas não caem de árvores. Os autores estão fazendo a parte deles.

FDO: Criativamente, qual o seu próximo passo?

Barreto: Dormir! (Risos) Estou trabalhando num projeto de longa-data com a escritora Maria Carolina Passos sobre o incêndio do Edifício Joelma, em São Paulo. Dedicamos os últimos quatro anos à pesquisa, entrevistas com sobreviventes e estudo do cenário. Vamos transformar essa tragédia num romance de arrepiar para registrar o momento e compartilhar algumas lições que aquele evento proporcionou, mas ninguém nunca se deu ao trabalho de promover.

No fronte da ficção especulativa, estou começando a rascunhar o terceiro livro daquele meu plano inicial. Vamos conhecer a heroína Aurora e saber como a Humanidade alcançou as estrelas, e pagou o preço por isso. Também tenho um projeto infanto-juvenil, que escrevo ao lado de minha filha – Ariel – chamado Kara Winters in the Stars. Estamos fazendo tudo em inglês, que é a língua nativa da Ariel. É uma história bem legal sobre uma garota que se perde dos pais num planeta desconhecido e precisa cruzar o universo para reencontrá-los.

About the Author

Rubens Rodrigues

Jornalista. Na equipe do O POVO desde 2015. Em 2018, criou o podcast Fora da Ordem e integrou as equipes que venceram o Prêmio Gandhi de Comunicação e o Prêmio CDL de Comunicação. Em 2019, assinou a organização da antologia "Relicário". Estudou Comunicação em Música na OnStage Lab (SP) e é pós-graduando em Jornalismo Digital pela Estácio de Sá.

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