“Quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser opressor”. O pensamento é do mais importante educador brasileiro, Paulo Freire, mas se aplica perfeitamente nas mais diversas searas, inclusive no esporte e especificamente no caso que passo a abordar neste texto: o futebol e as mudanças importantes que a Liga do Nordeste determinou para a Copa do Nordeste.

Dos 20 clubes que terão vaga para a competição a partir de 2019 (em 2018 há um regulamento de transição em função de direito adquirido e já estabelecido), apenas nove vão seguir o critério técnico, ou seja, serão os respectivos campeões estaduais de cada um dos estados nordestinos. Os 11 restantes (três com vaga direta e oito para uma fase mata-mata de onde saem quatro para totalizar 16) vão ganhar participação de acordo com suas posições no ranking nacional de clubes da CBF.

O objetivo da Liga é escancarado e é bom que seja assim, sem subterfúgios: garantir que os clubes mais importantes da região estejam na competição. A Liga percebeu o óbvio. O aumento para 20 clubes que ela mesmo promoveu fez baixar público, renda e qualidade técnica do torneio. Inchado, perdeu apelo e era preciso tomar alguma atitude.

Os grandes acertos da volta aos 16 clubes na fase de grupos e da criação de um Pré-Nordestão, entretanto, ficaram em segundo plano quando se passa a fazer uma análise dos critérios escolhidos (e discutidos há pelo menos dois anos) para a composição do torneio mais legal do país no primeiro semestre: poder político, influência, corporativismo e capacidade de gerar audiência nos meios de comunicação.

A adoção do ranking nacional para boa parte das vagas elitiza a competição e elimina o enfrentamento técnico puro da temporada anterior, deixando complicadíssima a chance de uma equipe menor participar. Um exemplo: Fortaleza ou Ceará podem ficar em sétimo lugar no estadual mas, pelo ranking, estarão na Copa do Nordeste sem qualquer problema no ano seguinte. Jamais um ou outro será ultrapassado no ranking nacional por alguma equipe do estadual (e o raciocínio é daqui pra frente, não pelo passado, já que o Icasa chegou a ultrapassar o Fortaleza, por exemplo, em 2014) e tal lógica vale para todos os outros estados. Em Pernambuco, a vez mais recente que um time além de Santa Cruz, Sport ou Náutico foi campeão ocorreu em 1944. Na Bahia, de 1970 a 2017, só em duas oportunidades (2011 e 2006) um time além de Vitória e Bahia conquistou a taça.

Assim, os clubes grandes do Nordeste, que insistentemente reclamam – e muitas vezes com razão – do tratamento desigual que sofrem em competições nacionais com divisão de receitas, captação de patrocínio, impacto decisório e da impossibilidade de crescimento real, pavimentam caminhos claros, protecionistas e idênticos regionalmente: impedem que qualquer outra força apareça e garantem as vagas na Copa do Nordeste ainda que façam trabalhos pífios ou menosprezem o estadual na temporada anterior. Um eventual bom trabalho – geralmente hercúleo e comovente diante das dificuldades – de um time com menos estrutura de nada adiantará a não ser que ele seja campeão, situação absolutamente rara, para não dizer impossível.

Não há, então, o objetivo de fazer diferente, de pensar em um crescimento igualitário e orgânico dos clubes da região. Há, sim, um anseio de dirigentes – e de muitos torcedores que já adoram a reserva de mercado pois o pensamento de levar vantagem e de indignação seletiva é dominante – em replicar o que ocorre no futebol no âmbito nacional. Desta forma, invertem a posição que ocupam na pirâmide nacional realizando agora o desejo de agirem como aqueles que hipocritamente atacam, se transformando em opressores criadores de regras em benefício próprio, e não mais vivendo como oprimidos.

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Fernando Graziani

Fernando Graziani é jornalista. Cobriu três Copas do Mundo, Copa das Confederações, duas Olimpíadas e mais centenas de campeonatos. No Blog, privilegia análise do futebol cearense e nordestino.

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