Por Renato Abê (renatoabe@opovo.com.br)
O Leituras da Bel teve acesso ao acervo da autora de O Quinze, cujas obras estarão disponíveis para o público a partir de maio. As preciosidades literárias revelam nuances da escritora e suas relações de amizade
Era 9 de agosto de 1964 e a ditadura militar ainda tomava forma no País. Naquela quinta-feira, foi direcionado à escritora Rachel de Queiroz o livro Palavras à juventude. Na folha de rosto, o autor da obra – um conterrâneo da autora – revelou em poucas palavras ter “estima e respeito intelectual” pela cearense. A letra bagunçada hoje gravada em folha amarelada pelos mais de cinquenta anos de história é de Humberto de Alencar Castello Branco, à época presidente do Brasil. Naquele momento, Rachel era uma das apoiadoras dos militares no poder e certamente Castello Branco julgou que o conteúdo do livro interessaria àquela jovem senhora de 53 anos.
Essa e outras tantas facetas reveladas nos livros que Rachel guardava em casa estão prestes a ficar disponíveis para o público cearense. Parte do acervo dela, com 3.063 obras (entre livros e periódicos), estará disponível para visitação a partir de maio na Biblioteca Central da Universidade de Fortaleza (Unifor).
Leituras da Bel teve acesso ao material, atualmente em processo de higienização e reparo, e antecipa algumas das preciosidades literárias que Rachel guardou até o fim da vida. Depois que ela morreu, em 2003, as obras foram adquiridas pelo Instituto Moreira Salles (IMS), que acaba de doar o acervo para a universidade cearense. A maioria dos títulos que ficarão expostos traz dedicatórias para a autora de O Quinze. Revirar os arquivos dela é redescobrir Rachel e conhecer palavras de nomes que vão de Carlos Drummond de Andrade a Jô Soares.
Grande amigo de Rachel e um dos nomes mais recorrentes na coleção da escritora, Drummond evidencia em dedicatória escrita em 1973, as diferenças político-ideológicas entre os dois. Em As impurezas do branco, obra em que o poeta fala das agruras da ditadura militar, o mineiro escreve: “À querida Rachel, pedindo-lhe olhos benevolentes para a avermelhada face de seu amigo sobrevivente do modernismo”, escreveu, entre outras dedicatórias que retratam a amizade deles em diferentes décadas. “A Raquel de Queiroz – para quê adjetivos?”, grafou o escritor em 1954 numa edição de Fazendeiro do ar & Poesia até agora. “A Rachel de Queiroz, não uma pedra no meio do caminho, mas um abraço amigo do Carlos Drummond”, pontuou em 1967. Já em 1980, ele deixou mais um “abraço carinhoso” para sua velha amiga.
Entre outras preciosidades, o acervo guarda escritos do poeta Mário Quintana, que antecipou de próprio punho para ela, ainda em 1980, um poema dele que só viria a ser publicado em 2005, nove anos após a morte do escritor gaúcho. Na primeira página daquela segunda edição de Esconderijos do Tempo destinada à cearense, Mário adianta em confusa letra que passeia entre cursiva e de forma: “Epígrafe para a 3ª edição: um velho relógio de parede numa fotografia está parado?”. Nessa publicação rara, ele revela ainda “velha admiração” pela “ilustre acadêmica e amiga”, que fez história como a primeira mulher a entrar para a Academia Brasileira de Letras.
Pelos muitos volumes do escritor Manuel Bandeira que estiveram nas prateleiras de Rachel, é possível acompanhar a evolução da amizade dos dois. De um livro para o outro um “cordialmente” se transforma em um “com muito amor”. Em 1962, Manuel rabiscou até um poema para Rachel e o então marido dela, Oyama de Macedo. “Oyama ama. Quem ama Oyama? Ama Rachel. Quem ama a Oyama? Ora, Rachel! E quem mais ama Rachel e Oyama? Ah, é Manuel”, escreveu o pernambucano em sua Antologia Poética.
De Vilma Guimarães Rosa, filha do autor de Grande Sertão: Veredas, Rachel recebeu em dezembro de 1969 o livro Estas Estórias. “Ofereço, com o coração cheio de saudade, este livro do meu inesquecível João Papai”, confidenciou Vilma, dois anos após a morte do pai. Já o próprio Guimarães sempre se referia à cearense, nas suas dedicatórias,
como “ilimitável”.
A vasta coleção inclui também o livro Cartas a Heloísa, escrita por Graciliano Ramos para a sua esposa. Com letra bonita – exceção em meio a tantas grafias pouco legíveis – a própria Heloísa Medeiros Ramos escreve para Rachel, cujas palavras demonstram uma amizade antiga. Já em O Calor das Coisas, destinada à escritora em junho de 1980, a autora da obra, Nélida Piñon, agradece: “À querida Rachel de Queiroz com quem aprendi a primeira lição”, se derrama a hoje imortal da Academia Brasileira de Letras.
Outra face de Rachel desnudada pelos livros é o incentivo a autores não tão conhecidos, como o pernambucano Haroldo Bruno. “O Viajantes das nuvens só foi possível pelo decisivo sopro que você, escrevendo o prefácio do livro, deu”, gratifica Haroldo, se colocando como o “aprendiz de escritor” em outubro de 1981. Já Fernando Lobo, autor do livro infantil Um beija-flor mora na lua, enaltece, em 1994: “Querida Rachel, a apresentação é melhor do que o livro”, retribui à autora que, na contracapa da obra, se dedicou a elogiar Fernando e a fábula que ele se arriscou em escrever.
Seja por meio dos posicionamentos políticos, dos intensos laços de amizade ou pelo incentivo a outros autores, é possível descobrir, nos livros que ela guardou, diversos e novos lados de Rachel, inclusive, alguns mais humorados. A exemplo da dedicatória de Jô Soares, que ao presentear O homem que matou Getúlio Vargas para a escritora, brincou: “Rachel, o livro fica em pé! Beijos gordos”, dedicou, em referência ao tamanho da obra, que tem 344 páginas e se sustenta na prateleira. Dá até para imaginar a cearense sorrindo.