Manuscrito de A Hora da Estrela

Em comemoração aos 40 anos da obra A Hora da Estrela, a Editora Rocco colocou no mercado uma edição especial. Manuscritos e ensaios acompanham o texto literário. A obra foi lançada em 1977, três meses após da morte da icônica escritora Clarice Lispector. Pedro Vasquez, editor do projeto, falou com o Leituras da Bel sobre a presença enigmática da escritora na literatura brasileira, a concepção da nova edição, a vida de Clarice e a presença da inesquecível personagem Macabéa nos nossos tempos.

Leituras da Bel – Durante décadas, Clarice foi considerada uma das figuras mais enigmáticas da literatura brasileira. Hoje, com algumas produções bibliográficas e pesquisas acadêmicas, o público parece ter voltado os olhos para a autora. O senhor acredita que aconteceu um boom sobre a obra clariceana?
Pedro Vasquez – Com certeza. É algo que ainda está em processo e não cessa de crescer, tanto no Brasil quanto no exterior, conforme comprovado recentemente com o lançamento da coletânea Todos os Contos, organizada pelo crítico e biógrafo norte-americano de Clarice, Benjamin Moser. Acredito que esse fenômeno se deva ao fato de Clarice Lispector estar muito à frente de seu tempo, tanto como escritora quanto como ser humano (era uma mulher separada, antes da existência do divórcio no País, que criava sozinha dois filhos em um momento em que isso não era bem aceito pela sociedade). Hoje, decorridos 40 anos de sua morte, o público está mais maduro para compreender sua dimensão humana, de mulher forte e engajada política e artisticamente, da mesma forma que também está mais preparado para entender sua obra, em virtude dos avanços obtidos no sistema educacional como um todo.

Leituras da Bel – Clarice é uma autora que navega bem por vários gêneros, conto, crônica e novela. O senhor destacaria algum aspecto da biografia de Clarice como divisora de águas na carreira da autora?
Pedro – Essa questão é muito interessante, pois permite esclarecer um pouco o aspecto poliédrico da produção clariceana. Como romancista, podemos dizer que Clarice Lispector “já nasceu pronta” com o surpreendente lançamento de Perto do coração selvagem, uma obra tão boa e complexa que muitos não acreditaram que poderia ser de autoria de uma moça tão jovem, ainda na casa dos 20 anos (ela tinha apenas 24 anos quando lançou o livro, em 1944). Mas, por outro lado, alguns aspectos de sua produção foram devidos ou potencializados por força das circunstâncias, como as crônicas, as entrevistas, as colunas femininas e as traduções de obras literárias e teatrais.

Assim sendo, podemos dizer que o divisor de águas na vida e na produção literária de Clarice foi sua separação e o retorno para o Rio de Janeiro, onde, movida pela necessidade de assegurar seu sustento e o dos filhos escreveu crônicas durante muitos anos para o Jornal do Brasil, realizou uma série de entrevistas memoráveis para a revista Manchete e se tornou tradutora, responsável pela adaptação para o público jovem de obras de grandes autores clássicos como Edgar Allan Poe, Walter Scott, Swift, Jack London e Jules Verne. Caso ela tivesse permanecido no exterior, na confortável condição de esposa do diplomata Maury Gurgel Valente, é muito provável, quase certo, que teria se restringido a escrever apenas romances e contos, limitando desta forma seu espectro criativo.

Clarice Lispector

Leituras da Bel – Clarice tem uma presença marcante na internet ¾ com páginas e memes que reproduzem trechos de livros. É possível apontar razões para esse interesse? O senhor acredita que essa movimentação pode funcionar como porta de entrada para novos autores na obra clariceana?
Pedro  – Clarice Lispector é, sem dúvida alguma, uma das estrelas literárias do mundo virtual, mesmo se muito do que é veiculado sob seu nome não tenha sido escrito por ela e sim por curiosos admiradores que se divertem atribuindo a ela textos da própria autoria, como ocorre também com Carlos Drummond de Andrade e Luis Fernando Veríssimo, por exemplo. Mas isso é normal no mundo da internet, em que nem tudo que cai na rede é peixe…

Esse aparte feito, o que importa de fato é que a popularidade de Clarice na internet, que você constatou, comprova a afirmação de que ela toca mais a alma do leitor de hoje do que dos leitores de seu próprio tempo. Isso porque, em vida, ela não foi nem de longe uma autora tão popular quanto é hoje, quando se tornou inclusive uma figura cult, um ícone feminino como Frida Kahlo, Simone de Beauvoir ou Greta Garbo, por exemplo.

Manuscrito de A Hora da Estrela

Leituras da BelA hora da estrela é o último livro lançado por Clarice em vida e um dos mais conhecidos do grande público. Como foi a decisão de colocar a obra nas livrarias com uma nova edição? Há interesse em produzir edições especiais de outras obras da autora?
Pedro – O propósito da presente edição comemorativa é assinalar, por um lado, os 40 anos de lançamento do livro e, por outro, os 40 anos de falecimento da autora, de modo que esta edição tem um caráter de homenagem e também de memorial. Mas o livro não é apenas um belo objeto, uma obra de coleção, e sim um trabalho com uma perspectiva muito mais ampla, pois oferece um texto introdutório inédito, de autoria de Paloma Vidal, além de seis ensaios que foram reunidos pela primeira vez em um único livro, três dos quais traduzidos especialmente para a ocasião do inglês (Colm Tóibín), do Francês (Hélène Cixous) e do espanhol (Florencia Garramuño). Os brasileiros são de autoria dos professores Eduardo Portella, Clarisse Fukelman e Nádia Batella Gotlib.

Leituras da Bel – A edição comemorativa oferece ao leitor, ainda, os manuscritos da obra.  Como foi o processo de curadoria dos fac-símiles?
Pedro – O grande diferencial é, como foi dito antes, a reunião dos ensaios, que ampliam e renovam as perspectivas sobre A hora da estrela e o esmerado projeto gráfico de Izabel Barreto. Os manuscritos são “a cereja do bolo”, pois permitem que o leitor chegue mais perto de Clarice, por intermédio de bilhetes e anotações feitas em envelopes e pedacinhos de papel, por exemplo, bem como do manuscrito original do livro propriamente dito. Para reprodução no livro escolhemos alguns dos exemplos mais representativos do ponto de vista do conteúdo e da plasticidade, já que um texto escrito em letra cursiva é algo raro na atual era do computador, sendo fascinante para o público mais jovem. Inclusive, para preservar a beleza destes textos nós os reproduzimos em quatro cores, para resgatar o amarelecimento do papel e a pátina do tempo.

Por outro lado, no texto de abertura, que focaliza justamente os manuscritos, a professora Paloma Vidal destaca determinadas passagens que foram reproduzidas no corpo do texto para facilitar o entendimento do leitor.

Leituras da Bel – Macabéa é uma personagem necessária mesmo em 2017?
Pedro – Sem dúvida alguma, pois o tema da solidão, da inadequação, do sentimento de não ser querida, de não estar no lugar certo e não poder contar verdadeiramente com ninguém continua mais atual do que nunca. Mesmo porque a modernidade digital criou novas formas de distanciamento entre as pessoas, expandindo e tornando mais complexos os mecanismos de exclusão e de distanciamento na cidade grande.

Serviço
A hora da estrela
Edição com manuscritos e ensaios inéditos
Editora Rocco
Autora: Clarice Lispector
Preço: R$ 44,50

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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