Ilustração: Jéssica Gabrielle Lima

Por Ayla Andrade*
Ayla Andrade é escritora, cronista e pedra de atiradeira. Escolhe palavras para alimentar o dia e, a partir de agora, colabora com o Leituras da Bel escrevendo crônicas quinzenalmente. Leia O ontem amarrotado, primeira produção de Ayla exclusiva para o blog:

Eu não sei quanto a vocês, leitores, mas eu quando vejo, jogada na sarjeta, uma peça de vestuário de um vivente qualquer me ponho a pensar como o diabo.

Como essa peça veio parar aqui? Quer dizer, a pessoa sai de casa vestido, camisa, calça, sapatos, penteado, tudo belo e sei lá como, num tropeço, num soluço, cai uma peça e lá fica? É assim?
Talvez minha surpresa advenha de eu mesma nunca ter perdido uma peça assim ao relento. Sim, já deixei por aí, em casa de outrens, alguns itens da vestimenta depois de uma festa, entre soluços e tropeços… vocês sabem do que estou falando, né?

Mas nesse caso, é assim. Uma da tarde, tô eu andando e pá, beira da calçada, uma blusa cigana, amarrotada, cheia de areia. Noite, tcham, um pé de sandálias, daquelas de amarrar na perna, as embiras todas soltas. Madrugas, eu no soluço, e zum, um short jeans com os bolsos pra fora e quase do avesso, abandonado.

Deve ser minha poética para as coisas infindas que me atrai a esse mundo do guarda-roupa deixado pra trás. Ás vezes, muitas vezes, paro e fico a admirar a peça ali largada, entre os semblantes de lixo e restos, a cidade acontecendo e imagino as cenas. Algo que sirva à minha imaginação glutona e pueril sobre como explicar aquele descuido com a roupa, que é quase pele, de alguém que não conheço, deixada pra trás.

Tenho preocupações como “e se era a saia preferida da moça?”, “e se era uma blusa de estimação do pai já falecido?” “e se a irmã mais velha tinha emprestado os tênis com a condição de não perdê-los?”. Me ponho sempre a doer… Depois, depois com o caminhar, deixando eu também a peça para trás, me doendo menos, ganhando distância, percebo que a despeito do desmazelo da roupa esquecida pode haver também a vontade de perder-se, de abrir mão, de estar leve, nu, despido. Tudo isso posto naquela imagem de um traje em desuso.

Chego em casa, a cabeça ainda em profusão, criando cenas explicativas, imaginando rostos, diálogos e vejo a roupa voando de algum carro, planando até tocar o chão, onde agora repousa. Há mesmo uma leveza de esquecimento em deixar pra trás o que nos esconde o peito, o que nos amarra os pés, o que nos limita o ser, o que nos constrange em forma e o que na noite passada era o ontem.

O ontem que, posto na roupa, se esquece de pronto.

Ayla Andrade
Fortaleza, 9 de setembro de 2017

*Ayla Andrade é assistente social, cronista, contista e amante do cotidiano. Ela já publicou o livro Mais feliz dos silêncios (Editora Substânsia, 2014) e publicou contos em algumas antologias, entre elas Encontos e desencontos, Antologia Massanova e O cravo roxo do Diabo: o conto fantástico no Ceará.

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About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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