Com sal e desafeto
Por Zélia Sales*

Registro do Açude Acarape, por Aurélio Alves
Lá em casa nunca me disseram que havia Papai Noel, então nunca tive o desprazer de descobrir a farsa do bom velhinho. Coelho da Páscoa, muito menos. Fada dos dentes, pior ainda. Quando mudávamos os dentes, nunca os botávamos debaixo do travesseiro, não tínhamos travesseiros. Pegávamos o dentinho apertado na mão, íamos pro terreiro: “Mourão, mourão, pega teu dente podre, me dá meu são”. E jogávamos o dente em cima do telhado. Eu não sabia o que era mourão, nem o que era são; achava esse palavreado meio sem sentido. Também não sabia para que servia esse ritualzinho, mas eu e meus irmãos o fazíamos sempre que perdíamos um dente.
Quando estávamos de dente mole, minha mãe advertia, “Arranque logo, senão o outro nasce por cima, fica a coisa mais feia do mundo”. Amarrávamos no dente uma linha, um cordão, puxávamos, escapulia, insistíamos, nem sempre dava certo. Então minha mãe intervinha, “Venha cá, deixe eu ver esse dente”. E a gente já recuando, tentando fugir do seu assédio. Não tinha promessa, deixe eu tirar, depois lhe compro um picolé, depois faço um vestido pra sua boneca… não, não tinha acordo. “Abra a boca…” Agora ela já tinha fechado o cerco. “Não vou fazer nada, só quero ver se já está mole…”. E a inocente escangalhava a boca, “Ahhh…” Ela, com o dedão, empurrava o dente com toda força, “Depressa, traz o sal!”
Se a gente não fosse esperta, era capaz de engolir o dente. E lá vem sangue, choro e um sorriso banguela de alívio, tudo junto. O dente branco enfim liberto da carne ingênua.
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Zélia Sales
Já fez algumas conquistas na vida e diz que uma das mais ousadas é escrever, publicar, chegar ao leitor, que é sua maior motivação. É formada em Letras e atua na formação de leitores em escolas públicas. Nas voltas que o mundo deu, virou também dona de casa, esposa, mãe, escritora. Enquanto escreve, corrige redações, refoga um frango, procura os filhos pelo Whatsapp. Acredita que escrever é assumir uma conduta subversiva. Ela integra o livro Relicário – produção comemorativa pelos 30 anos do caderno Vida&Arte.
Essa crônica é uma viagem no tempo, quando criança passava por isso também. Meu pai arrancava o dente, com a mesma desculpa de ver se estava mole (acho que havia um manual de instruções para pais) e depois bochecho com água e sal. Cortes pequenos eram resolvidos com pontos falsos e até uma costela deslocada (eu era bem quieto rsrs) foi colocada de volta pelo “dr” meu pai e imobilizada com várias voltas de esparadrapo. Sim, fomos bem felizes. Abraços.