Por Tetê Macambira*
Camus não é “Um Homem do Teatro”
Embora o filósofo, romancista, ensaísta e dramaturgo argelino Albert Camus tenha construído textos teatrais plenos, dirigido, atuado e coordenado encenações com empenho e critério, há a crítica de que seu teatro não apresente nada de inovador, de que sua dramaturgia é uma sucessão sensaborona de lugares-comum.
Verdade, seu teatro – cenicamente falando – nada apresenta de novo. Mas… como se sobressair à mesma época em que surgia Antonin Artaud e seu Teatro da Crueldade? Como ser um “homem do teatro” se o interesse de Camus focava-se na mensagem do texto teatral, portanto – sem desmerecer a encenação – o texto era o “prato principal” da peça teatral. E levemos ainda em conta que Camus era tão afeito a essa ideia de usar a manifestação teatral como um suporte para suas ideias e filosofia, que suas “troupes” receberam os nomes de “Teatro do Trabalho” e “Teatro de Equipe”. Os nomes dos grupos já denunciavam seu objetivo: levar a mensagem ao operariado.
“E se não podemos suportar tal mundo, devemos denunciá-lo. E, precisamente, a primeira coisa a ser feita é lançar um grito de revolta. Pois pelo menos metade do terror e da fatalidade é feita da inércia e da fatiga de indivíduos frente a princípios estúpidos ou más ações com as quais continuam a envenenar o mundo”
(Albert Camus)
Portanto, se ele quis usar o teatro como um veículo para o seu discurso ser melhor e mais facilmente compreendido, só se pode dizer que SIM!, ele foi perfeito.
Sobre a peça Estado de Sítio
Estado de Sítio é atualíssima. E um texto que deveríamos, todos, estar lendo neste momento político tão controverso, Camus – em parceria com Jean-Louis Barrault – fez essa peça tomando como base seu romance A peste. Em ambos os trabalhos, há a supressão de direitos e a coerção, notadamente imposta pelo poder público.
Estado de sítio apresenta uma abordagem de uma cidade, Cádiz, Espanha, estar à mercê de uma epidemia. Epidemia esta que vai além da física, é um mal político reforçado pela figura ditatorial da personagem Peste. Camus queria generalizar qualquer ditador nessa personagem e, por isso, desaprovou que a encenação em Paris dessa personagem viesse com um uniforme nazista.
Enquanto o romance pretende ser um mergulho no próprio medo do protagonista, tornando deliberadamente a leitura um tanto quanto monótona, a peça foi na contramão, adotando – a fim de atribuir um maior dinamismo – a farsa e o coro.
Camus baseou-se no modelo de auto sacramental espanhol, representado durante a Idade Média nas igrejas e levando ao público alegorias da virtudes cristãs.
Composta por três partes – a primeira traz a vinda do cometa e o medo da população, facilitando regras governamentais incômodas, a segunda parte é o Absurdo desse totalitarismo político, e a terceira apresenta a derrota final da Peste – mas não sem perdas por parte do lado vitorioso.
Em toda a peça permeia a ideia do medo, o que esse medo provoca e o que a falta do amor prejudica; é um hino à liberdade – e a obra que o próprio Camus mais achava parecida consigo mesmo.
A primeira parte da peça demonstra toda uma estrutura da cidade e perfil de seus habitantes, há o alvoroço em torno do cometa e, para aquietar a população e dominá-la, leis vão sendo estabelecidas no intuito de conter o povo:
“Enfim – e será o resumo. A fim de evitar qualquer contágio pela comunicação do ar, uma vez que as próprias palavras poderão ser veículos da infecção, é ordenado, a cada um dos habitantes, que traga, constantemente, na boca um tampão embebido em vinagre, que o preserve do mal e, ao mesmo tempo, o conduza à discrição e ao silêncio”.
A situação vai-se tornando insustentável. O povo é calado; seus direitos, suprimidos; “a absurdidade reina”, chega-se ao clímax na metade da penúltima parte, a II. Retomando a ideia dos gregos antigos, Camus resume a ópera, eventualmente, através do “Coro” – que não somente serve como um resumo pontual mas também transmite a sensação geral do povo e fornece uma “quebra” na narrativa dramática, oferecendo uma certa pausa ao público.
“Éramos um povo e, agora, apenas massa! Convidavam-nos e, hoje, nos convocam. Permutávamos o pão e o leite e, agora, somos abastecidos! Pisamos. (…) Pisemos! Pisemos! Ah! Que dor! É a nós mesmos que estamos pisando! Sufocamos, nesta cidade fechada! Ah, se o vento viesse…”
A Secretária, personagem pertencente ao sistema, é quem entrega a fórmula salvadora ao final do Ato II: “Do mais distante que eu me recordo, sempre bastou que um homem vença seu medo e se revolte, para que sua máquina comece a ranger.” O que confere eco à filosofia camusiana, cuja obra foi dividida pelo próprio autor em três ciclos: o do Absurdo, seguido pelo da Revolta e seria finalizado – não fosse a morte precoce do autor – pelo ciclo do Amor. Mas continuemos com a sequência dramática, porque neste momento, espera-se ardentemente por uma reviravolta, por uma retomada de poder pela parte do povo; o leitor/público já se sente – ele também – preso em um estado de sítio no decorrer da trama da peça. E vamos, esperançosos, à última e terceira parte de Estado de sítio.
Há, evidentemente, uma agitação inicial, um jeito de não se saber o como fazer uma revolução, por onde começar… há discussão – o que traz como resposta imediata do poder mais repressão; repressão essa que, está mais que claro, irá gerar confabulação (finalmente! êba! por que sempre parece ser necessário atacar o povo até o limite para que o povo reaja?) e – espera-se ardente e ansiosamente – a revolta.
“Estão fugindo. O verão termina em vitória! E acontece, assim, que o homem triunfa! E a vitória tem, então, o corpo de nossas mulheres, sob a chuva do amor . Eis a carne feliz, luzidia e quente, cacho de verão, onde os vespões palpitam. Sobre as eiras do ventre caem as colheitas da vinha. As vindimas flamejam nos bicos dos seios ébrios! Oh, meu amor! O desejo arrebenta, como um fruto maduro, a glória dos corpos jorra, enfim. Em todos os cantos do céu, mãos misteriosas estendem suas flores e um vinho dourado escorre de inesgotáveis fontes. É a festa da vitória: vamos buscar nossas mulheres”.
Tudo lindo, tudo poético, tudo maravilhoso – mas Camus nunca seria tão óbvio assim, e a peça continua depois dessa euforia de vitória. E o final não é tão “alegrinho” quanto se esperaria, aliás, não é nem um pouco alegre – e a nota final talvez seja acionada pelo suicídio de Nada, personagem que merece ganhar uma análise à parte.
NADA
Viva o Nada! Ninguém se compreende mais: atingimos o instante perfeito.
Nada é a personagem icônica e, embora o próprio Camus não quisesse que suas personagens fossem atreladas a alguma tipologia, é impossível não absorver essa figura enquanto uma representação falante dos anseios gerais. Não é à toa que a primeira intervenção de reconhecimento da personagem em cena venha seguida do termo l’idiot (idiota). Nada é o bufão, o palhaço, o idiota, o débil, aquele que a tudo é permitido dizer, porquanto não esteja consciente do que diz, aliás, não esteja atento às consequências do que diz, é a válvula de escape do povo, imbecil que tudo pode lhe ser aceito por não ter a lucidez. Porque acabamos nos sentindo, em um processo de catarse, “vingados” pela expressividade oral de Nada.
Nada, o niilista bêbado toma a contramão do desejo de viver que anima toda uma coletividade, Nada é antítese da vida, é a força da morte. O que vai ao encontro da corrente do existencialismo que resumidamente e a grosso modo diria que a vida não tem sentido, cabendo, então, a cada um de criar o próprio sentido para a vida. Mas o que acontece se você se julga um nada e não espera nada? que sentido pode ser criado? o que se esperar da vida? Nada, na primeira cena, diz a Diego que a morte está na vida e que a vida é crueldade.”A vida vale a morte” – grita Nada enquanto o Coro entoa uma copla: “Não há nada mais verdadeiro que a morte.”
De tal forma Nada não atende a pressupostos, que logo é engajado pelo poder como uma marionete (crítica feroz mas pertinente, infelizmente).
Sua trajetória no decorrer da peça é propositadamente errática e falha, vítima dos prazeres e dos desejos pessoais, Nada parece se comprazer na negação; quando começamos a amar a personagem pela revolta justa, ela adere ao opressor, quando parece estar galgando os cimos do poder, ei-la na lama para, em seguida, ser ela mesma… ou não.
Sua morte proporciona uma atmosfera de desistência e, paradoxalmente, ao mesmo tempo, de resistência pacífica.
As personagens Nada e Calígula partilham um mesmo desprezo nietzschiano por todos aqueles que por conformismo e por preguiça escolhem o conforto das convenções e o refúgio da moral. Nada clama em alto e bom som: “Eu tenho comigo o desprezo até a morte. E nada desta terra, nem rei, nem cometa, nem moral, nunca me dominarão!”.
Apesar do idealismo de Diego se bater contra o amor por uma mulher (eros) dentro dele, tornando-o um personagem complexo e mais real, ainda é a figura trôpega e esfarrapada de Nada que nos seduz, quer seja por sua intrepidez ou covardia, quer seja pela sua loucura ou lucidez.
É em Nada que nossos olhos se focam porque, mesmo que saibamos que a vida não nos proporcione um mundo de maravilhas, temos que ir além das convenções muitas e seguidas vezes. Porque resistir ao senso comum é inútil – e menos que nada.
“Há uma justiça, sim: a que fazem à minha aversão do mundo. Sim, ides recomeçar. Mas não é mais assunto meu. Não conteis comigo, para vos fornecer o perfeito culpado: não tenho a virtude da melancolia. Ó velho mundo! É preciso partir. Teus carrascos estão cansados, seu ódio torna-se frio demais. Sei muita coisa, o próprio desprezo cumpriu seu tempo. Adeus, brava gente. Um dia, aprendereis que não se pode viver bem sabendo que o homem nada é e que a face de Deus é horrível”.
“Camus amava apaixonadamente o teatro, o trabalho cotidiano do teatro com seus ensaios, as discussões com a técnica, as trocas com os atores e principalmente com as atrizes 3:). Ele amava o teatro pelo seu trabalho de equipe. ”
*Tetê Macambira é revisora, tradutora, escritora, fotógrafa, atriz e adestradora. Quer aprender a fazer suco de nuvem e bolo de desejos. Enquanto não acha nem receitas nem consegue os ingredientes, inventa minibiografias que nada dizem dela mesma.
Adorei!
Acho incrível ler textos de crítica literária feitos por outros escritores. Dá mais vida, parece que se está escrevendo sobre um velho amigo.
Grata por esta leitura!