Ilustração: Jéssica Gabrielle Lima

Por João Paulo Matos*

Dia desses, uma mensagem no whatsapp: o que quisera Adriana Calcanhoto dizer, ao musicar “quando tem o teu cheiro dentro de um livro/ na cinza das horas”, perguntou-me uma amiga. Respondi que sempre entendera como sendo referência ao primeiro livro de Manuel Bandeira, uma cena comum, até, a da casa vazia cheia de saudade. Um daqueles momentos em que o caminhar-sem-rumo-direto-para-algo nos leva à lembrança – no caso, ao livro e a tudo que dele emana. Mas aí uma analista amiga minha diz que essa é uma forma de gozo. Eu acho que não digo nada…

Em dias um tanto mais para cá, mas ainda desses, empreendi uma faxina nos livros, montei uma estante, coisas que a gente faz a cada alinhamento dos planetas – talvez por isso tenha levado uma semana. E nisso me vi a desbravar caminhos há um tanto já ermos, embrenhas que, de tanto ninguém pisar, vão sendo tomados pela poeira, pelo mato, pela sensação de esquecimento – ou talvez seja só inércia. Talvez. Talvez só um espelho d’água, calmaria que se agita quando se achegam à borda.

E foi isso, no desfazimento da suposta ordem das coisas: redemoinhei. Desmontei tudo que nunca fora necessariamente montado, emaranhados de livros pelo chão, e, à medida que retirava a poeira dos dias e os folheava, do meio se descortinavam as sombras, as sobras, a marca dos passos, dos caminhos, dos encontros. E muito cheiro havia em cada livro… Uma história que parece que nem foi minha, marcada na forma de assinar, nas datas, nas dedicatórias. Em uma dedicatória em especial, que o destino desfolhou, numa história de dragões que conheceram o paraíso e se perderam, no gosto doce da lembrança… e uma dor que, vez ou outra, visita as noites.

E, dos pedaços no chão, o remonte. Dessa vez, a tal estante. Eu construíra – “improvisara” seria o termo mais adequado, mas… Era como montar a mim mesmo num quebra-cabeças. Eu conhecia a imagem. As peças se encaixavam. E pesavam. E o peso deles é meu. O peso delas sou seu. E disso não há fuga – exceto, talvez, a assunção.

E, desse peso, compus os espaços, preenchi as paredes, ornei. Tentei tapar os vazios. Colocar os livros na estante foi como empilhar tijolos que eu tirava do peito, como que para abrir espaço, para deixar o ar passar: eu contado, fora de mim, na poeira; nas páginas, umas já amareladas, outras nem tanto; na tinta; nas marcas à caneta – na voz do Sinatra, que por aqui canta bem mais que Adriana, sempre lembrando que as primeiras horas da manhã, quase antes do sol, são as piores. Mas ainda, e talvez sempre, perdido no cheiro que ainda há nos livros.   

*João Paulo Matos é formado em Letras, revisor textual e estudante de Direito. Quer escrever, tocar violão e assistir filmes de heróis.

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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