Por Ayla Andrade
Para Eduardo Brasil
Sim, parecem tempos de guerra. A gente armado de certezas e entrincheiramento.
Um burburinho que se come a céu aberto. Uma angústia que se leva dentro da bolsa. Uma ansiedade que se veste pra ir ao trabalho. Um desespero que se lê na palma da mão. Um cansaço que se respira ao acordar. Um medo que se dorme por cima.
Estamos acuados e vivendo a vida normalmente. Fazendo as tarefas cotidianas. Acuados e cravando a faca aonde nos permitem. Cravando a faca porque em tempos de guerra é isso que se faz. E aonde nos permitem porque sobra pouco do inimigo para o acerto de contas. No geral, nem reconhecemos quem é o inimigo. Só cravamos a faca. Depois apreciamos, assustados, que a ferida doa.
A gente trava com a dor da ferida. Engasga, entala, guarda no peito, mas não ingere, não absorve, não trata… (e é pra isso que serve o trato digestivo!), mas a gente não sabe digerir. A gente mastiga, rumina, baba pelas beiradas da boca, mas não digere.
E a ferida vai e dói na gente, mesmo que a faca esteja nas costas do outro. E então, apreciamos, assustados, que a ferida doa. Estamos adoecidos.
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Leia a crônica ‘Coisas Infindas’, da escritora Ayla Andrade
Cada geração vive seus males sem necessariamente escolhê-los, mas de uma forma ou de outra, os males sempre nos acometem.
Não sei eu, ao certo, que mal maior tem transformado nossa geração nesse espetáculo de apreciação de feridas expostas. De fato, não sei. Tenho conjecturas. Tenho catarses. Tenho espasmos. Tenho úlcera.
Tenho atravessado a vida ou nossa geração, com alguma sorte e certos privilégios. Desse último me envergonho por vezes e na sorte tento o acalanto. Tento. Tento pra sentir a ferida doer menos e eu poder também atravessar a noite.
Dizem que nas guerras as noites tornam-se imensas e fazem sumir as pessoas. Muitas pessoas. As que cravam facas e as que carregam feridas. Em tempos de guerra não há sono, não se dorme. Podia não haver noite. A noite carregada de poemas & estrelas & amores. Em tempos de guerra tais coisas são mais ou quase tão escassas quanto pão, que não nutre, mas se pode digerir. Mas a gente acha que o problema é a noite e não os tempos de guerra. E segue cravando a faca e apreciando, assustados, que a ferida doa.
De dia, quando o acalanto da sorte vem e, quando por vezes, os tempos de guerra apregoam trégua, tenho delírios e nos vejo como desertores, singrando pelos mares, libertos. Nada de cãibras ou dormências.
Nós aprendemos, em segredo, a lamber um a ferida do outro, mesmo que adoecidos, e ainda, com elas nos arrojamos. E no meu delírio atravessamos nossa geração cantando as cantigas dos desertores para o que o barco siga em consonância com nossa a travessia gigante, muito maior que os nossos sonhos possam alcançar. No entanto, sigamos, amigos, porque as feridas hão de deixar cicatrizes, mas elas serão a prova de que juntos chegamos a conquistar o que é nosso.
Ayla Andrade
Outubro, 2017
*Ayla Andrade é assistente social, cronista, contista e amante do cotidiano. Ela já publicou o livro Mais feliz dos silêncios (Editora Substânsia, 2014) e publicou contos em algumas antologias, entre elas Encontos e desencontos, Antologia Massanova e O cravo roxo do Diabo: o conto fantástico no Ceará.
Ylinha,
Este texto não é uma crônica: é um manifesto. Imensamente alegre por ele. Passou um filme na minha cabeça e me invadiu uma sensação de sim, valeu a pena e sim, vamos seguir. Escrevendo. Lambendo as feridas uns dos outros. Cravando as facas. Deixando se iluminar pela escuridão, como dizia o teu desaforismo que eu mais amo. Dor sintetizada dói mais. Manifestos são sínteses. Sim, tudo valeu a pena. Sim, seguiremos. Ainda que adoecidos. Ainda que desertores. Ainda que inacabados. Quando nascemos o mar já estava aqui. Já era verde e salgado. A guerra já estava em curso. Ninguém nos presenteou com nenhum roteiro. Nos restou fabricar nossas naus, nossas bússolas, nossos astrolábios. Eu sempre soube que era das tuas mãos que sairia o manifesto dos seres inacabados: o nosso. Teu respeito pelas moradas antigas, pelos rios e pelos fantasmas sempre foi a encruzilhada onde nos reunimos: nós, vindo de lugares tão distintos e com formas de pensar tão variadas. Quando li os anti-poemas de Nicanor Parra senti uma estranha intimidade. Muito depois entendi que essa intimidade vinha do convívio com teus desaforismos. Já não temos mais vinte anos e seguimos escrevendo. Já não temos mais vinte anos e seguimos nos reconhecendo nos textos, nos olhares, nas conversas e nos silêncios. Penso que a solidão nos ajudou a ser quem somos e cada um de nós criou ferramentas muito distintas que deram origem à poéticas também muito distintas. Mas se as facas, as feridas e as cicatrizes são distintas, a doença é a mesma. E também foi a mesma a certeza de que sempre tivemos a noite com todos seus poemas & estrelas & amores. E isso é por si só suficiente para criar conexões duradouras. Não há nada do que se envergonhar. Teu texto acalentou meu sábado. Grato demais por tudo até aqui. E desejo que sim, amiga, juntos cheguemos a conquistar o que é nosso.
Abraço,
nuno g.
ps: que doa a ferida. que sangre. a poesia é mesmo a arte de extrair beleza das cicatrizes. nem que seja à fórceps.