Por Alessandra Jarreta*
Resolvi ler A vegetariana por uma razão óbvia: sou vegetariana, e a sinopse falava sobre as consequências que uma mulher coreana enfrentava após parar de consumir carne. Eu só havia lido outra obra vinda da Coreia, o emocionante Por favor, cuide da mamãe, da premiada autora Kyung-Sook Shin, e como gostei muito não vi motivos para negar uma chance para o estranho livro escrito por Han Kang.
Han Kang é uma escritora coreana com pai e irmão escritores. Ela faz parte de uma nova geração de autores que usam do realismo fantástico para falar sobre a conservadora sociedade coreana, especialmente do papel da mulher nessa sociedade. Reconhecida por examinar a tristeza e a solidão fundamental do ser humano, estudou literatura na Yonsei University e atualmente dá aulas de escrita criativa na Seoul Institute of the Arts.
Inspirada por uma linha do poeta modernista Yi Sang que diz “I believe that humans should be plants (Eu acredito que os seres humanos deveriam ser plantas). Escreveu sua obra mais conhecida, A vegetariana, que ganhou o Man Booker International Prize em 2016. O jornalista britânico Boyd Tonkin, um dos jurados, disse que a decisão fora unânime: “Em um estilo tanto lírico como lacerante, revela o impacto dessa grande recusa na própria heroína e naqueles à sua volta. Este livro compacto, requintado e perturbador permanecerá longamente nas mentes e nos sonhos dos seus leitores”.
Han Kang foi a primeira escritora coreana a ganhar o prêmio, e esteve na lista do NYTimes Book Review dos dez melhores livros de 2016. A vegetariana também foi transformado em filme, ficando entre um dos 14 selecionados (de 1.022 concorrentes) para inclusão no World Narrative Competition do North American Film Fest, sendo igualmente sucesso de critica no Festival Internacional de Cinema de Busan.
“Não poderia ser mais vívida, aquela sensação da carne fresca sendo mastigada por meus dentes. Meu rosto, meu olhar. Parecia vê-lo pela primeira vez, mas era com certeza o meu rosto. Não, pelo contrário, parecia tê-lo visto inúmeras vezes, mas não era o meu rosto. Não sei explicar. Aquela sensação familiar, mas estranha… tão vívida e tão estranha, assombrosamente estranha”.
O livro é excêntrico do começo ao fim, o que não necessariamente signifca algo ruim (apesar da edição brasileira publicada pela Devir deixar muito a desejar, com um péssimo acabamento e terríveis erros de gramática e revisão). Dividido em três partes, acompanhamos pela perspectiva de vários personagens os desdobramentos de uma decisão inusitada, sem motivações politicas ou de saúde. Yeonghe, a vegetariana, deixa de ser uma jovem esposa submissa e banal para torna-se um imenso tormento para todos ao seu redor quando deixa de consumir qualquer produto de origem animal, sentindo imensa repulsa pela menor menção ao alimento.
“Isso está incrustado ali, onde gritos e prantos foram compactados em camadas. É por causa da carne. Comi carne demais. Todas aquelas vidas estão paradas ali. O sangue e a carne foram digeridos e espalhados por todos os cantos do corpo, os resíduos foram excretados, mas as vidas ficaram tenazmente grudadas no estomago. Uma vez, uma única vez, queria poder dar um grito forte. Queria sair correndo em direção ao escuro. Será que dessa maneira esta bolota será expelida para fora do corpo? Será possível?”
Conheça Han Kang
Yeonghe é uma personagem sozinha em um mundo que não aceita que ela aja fora das regras do jogo. Desprezada e constantemente humilhada pelo esposo, rejeitada pela família e julgada como louca, Yeonghe é uma propriedade tanto do pai quanto do marido, como uma boneca que subitamente passa a falar e a fazer malcriações. O livro trás questionamentos à machista sociedade coreana, que enxerga a mulher como um objeto de prestígio social, tanto quanto um carro de luxo ou uma boa posição em uma empresa. A vegetariana não é apenas a história sobre uma esposa que decide parar de comer carne, é também a história de uma mulher que escolhe não ser mais uma coadjuvante em sua própria vida, afastando-se das milhares de vozes ao seu redor para tentar ouvir a própria.
“Se eu conseguisse dormir. Se eu pudesse largar a consciência ao menos por uma hora. Acordo inúmeras vezes durante a noite e ando de um lado a outro descalça, com a casa já toda fria. Gelada como uma comida já fria, uma sopa fria. Não consigo ver nada do outro lado da janela escura. De vez em quando a porta de entrada escura se sacode, mas não há ninguém que tenha batido na porta. Quando volto e experimento colocar as mãos por debaixo das cobertas, já está tudo frio”.
*Alessandra Jarreta é estudante de Letras da UFC, mediadora dos clubes de Leitura Nordestina, Leia Mulheres, Leituras Feministas, Clube do quadrinho e Lendo Clássicos. Escreve quinzenalmente para o Leituras da Bel sobre Mulher e Literatura.