Por Alessandra Jarreta*

Para que serve a ficção científica? Mais do que imaginar carros voadores e robôs limpando a nossa sujeira, o gênero, também conhecido como sci-fi, existe para nos fazer refletir o presente e alertar sobre o futuro. Grandes livros como 1984, de George Orwell, e O conto da Aia, de Margaret Atwood, alertam leitores para uma um terror ficcional que parece estar batendo à porta – um aviso que continua necessário. Vislumbramos o futuro sem precisar estar lá, e isso nos dá a chance de evitar que esse futuro aconteça.


Viagens no tempo não são novidade na ficção. Bem conhecidas na literatura, no cinema, nos quadrinhos e na televisão, vimos com a A máquina do tempo e a Legião dos super-heróis as maravilhas (e os terrores) que o futuro nos aguarda. Esteja situado em governos ditatoriais ou paraísos tecnológicos, geralmente acompanhamos um protagonista, um homem branco, tentando se camuflar, se inserir ou fugir. Mas o que aconteceria se esse protagonista fosse uma mulher, negra, e ela voltasse contra a sua vontade para o sul dos Estados Unidos no século XIX, antes da Guerra Civil? E se ela em poucos segundos fosse considerada uma escrava e não tivesse como retornar?

Essa é a história que vai nos contar Kindred, livro inédito da escritora americana Octavia Butler, publicada pela primeira vez no Brasil pela editora Morro Branco. No livro acompanhamos Dana, uma jovem escritora nos anos 1970, que no dia do seu aniversário, quando está de mudança para um novo apartamento com o marido, sente uma vertigem e volta para o passado, a tempo de salvar uma criança que está se afogando, e sem ter a menor ideia de como voltar pra casa.

“O garoto estava literalmente crescendo diante dos meus olhos – crescendo porque eu o vigiava e ajudava a mantê-lo a salvo. Eu era a pior guardiã possível para ele – uma negra para cuidar dele numa sociedade que considerava negros sub-humanos, uma mulher para cuidar dele numa sociedade que nos considerava eternas crianças.” (Trecho do livro)

Conhecida como a dama da ficção cientifica, Octavia Butler decidiu se tornar escritora aos 12 anos, depois de assistir “Devil Girl from Mars” (Garota demoníaca de marte) e constatar que podia fazer coisa melhor. E depois de assistir ao filme escreveu o rascunho que serviria de base para a sua série Patternist, ainda não publicada no Brasil. Seu pai faleceu quando tinha apenas 7 anos, e Octavia foi criada pela avó e pela mãe, que trabalhava como empregada doméstica. Apesar de ter vivido em uma comunidade racialmente integrada em Pasadena, na Califórnia, a jovem Butler logo teve que lidar com o racismo, vendo sua mãe entrar pela porta dos fundos das casas e ouvindo ofensas com frequência.

Tímida, com dislexia e com 1,80m de altura, Octavia passava todo o tempo possível na biblioteca para evitar os bullies da escola, lendo e escrevendo. Sua mãe também lhe dava livros e revistas que as famílias brancas jogavam fora, e seu gosto por histórias logo ganhou ênfase na ficção científica, tornando-se leitora voraz de revistas do gênero como Amazing Stories, Magazine of Fantasy & Science Fiction e  Galaxy. Apesar de avisada pela tia que “negros não podem ser escritores”, e contrariando o desejo da mãe de ter uma filha secretária, Octavia , assim como Dana, arranjou uma sequência de empregos temporários pouco desafiadores para poder acordar de madrugada e escrever, até poder larga-los e viver somente da escrita.

Octavia Butler

“Entrevistador: Eu ouvi você falar sobre os trabalhos em fábricas que você realizou antes de se ter estabelecido como escritora. Você disse que uma das poucas coisas boas sobre eles era que ninguém exigia que você fosse agradável.

Octavia: Ou sorrir. Essa não é a minha natureza, então foi muito bom ser tão mal-humorada quanto eu me sentia, porque estava me levantando cedo para escrever e depois trabalhar, e nas últimas horas do dia eu estava praticamente no automático. Lembro-me de trabalhar em uma casa de correspondência; Eu nem sei se esses lugares ainda existem. Eles tinham máquinas e pessoas juntando pedaços de correio para publicidade. Era como uma linha de montagem em uma fábrica, apenas um pouco mais complicada. Você faz isso durante todo o dia até seus ombros desejarem desertar para outro corpo.” (autora em entrevista)

Octavia Butler formou-se pela PCC com um diploma de tecnóloga em artes com foco em história, e teve a inspiração para escrever Kindred durante a faculdade, quando um colega envolvido com o movimento Black Power criticou gerações anteriores de afro-americanos por terem sido tão servis aos brancos. Essa experiência criou na autora o desejo de explicar em uma história como essa subserviência era uma forma silenciosa e corajosa de sobreviver. Dana, durante sua estadia no passado, é obrigada a agir como escrava e baixar a cabeça para injustiças, explorações, estupros e espancamentos, tentando não acabar morta amarrada em um tronco ou dentro da boca de um cachorro.

“Algum dia eu fugiria de novo? Eu seria capaz?
Eu me mexi, me contorci de alguma forma, deitando de lado. Tentei fugir dos meus pensamentos, mas eles ainda vinham.
Está vendo como é fácil criar um escravo? eles diziam.” (trecho do livro)

Em 2005, Butler foi admitida no Hall Internacional da Fama de Escritores Negros da Universidade Estadual de Chicago. Escreveu séries de sucesso, romances e coletâneas de contos, tratando em suas obras temas como o afrofuturismo, a reconstrução do ser humano, raça e gênero e a criação de comunidades alternativas. Faleceu aos 58 anos em 2006 devido a um derrame cerebral, e uma bolsa de estudos com seu nome foi criada para incentivar estudantes negros a participarem do Clarion West Writers Workshop e do Clarion Writers’ Workshop, oficinas de criação literária onde Butler cresceu como escritora.

A autora

“Eu terei que ser uma escritora de sucesso. Meus livros irão para listas de mais vendidos, quer as editoras se esforcem ou não, quer eu receba adiantamento ou não, quer eu ganhe outro prêmio ou não. Então que seja! Eu encontrarei o caminho para fazer isso acontecer. Meus livros serão lidos por millhões de pessoas! Comprarei uma bela casa em um bairro bacana. Eu mandarei jovens negros e pobres para cursos de escrita. Ajudarei jovens negros e pobres a ampliar seus horizontes. Ajudarei jovens negros e pobres a entrarem para a faculdade. Então que seja!” (autora em entrevista)

Octavia Butler

Octavia Butler foi uma grande escritora e uma brilhante estrela no universo da ficção cientifica, um gênero que até hoje continua muito fechado para as mulheres. Espero poder ver mais obras da autora publicadas por aqui em breve.

*Alessandra Jarreta é estudante de Letras da UFC, mediadora dos clubes de Leitura Nordestina, Leia Mulheres, Leituras Feministas, Clube do quadrinho e Lendo Clássicos. Escreve quinzenalmente para o Leituras da Bel sobre Mulher e Literatura.

About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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