Por Kah Dantas*

Estevão

Veja que coisa engraçada sucedeu nesta manhã de chuva, quando eu cheguei mal-humorado e com ideias amarguradas de finamento à pensão onde me abrigo, praguejando e lamentando sobre meus destinos mais recentes, uma dor de cotovelo cosmopolita e seis salários atrasados: um caminhão, cheio de cascalho, tombou do outro lado da rua.

Não houve feridos, deu no jornal.

Eram dez e meia quando fechei o portão atrás de mim, um calor abafado e esfumaçado de todo tipo de escapamento, além do peito inchado de uma conhecida vontade de chorar que não dá em lágrimas, porque as produzo com pouca regularidade. A vizinha de baixo cantava uma música sem letras – lamúria simpática – e as notas bonitas se misturavam ao ar que ia embaixo de um céu cada vez mais cinza, anunciando o toró de água que se aproximava. Parecia que todas as coisas tinham se juntado à voz da mulher como que para chancelar os humores do espírito murcho que habitava dentro de mim.

Primeiro, caiu a chuva. Depois, a mulher cantou mais alto. Alguns segundos mais e o caminhão tombou. E o que aconteceu a seguir foi como uma mágica entrando pelos meus ouvidos.

O som do cascalho escorregando do caminhão para o asfalto, escute, foi abraçado pela chuva e acompanhado pela voz da mulher, dando à luz que atravessava as gotas frias uma sinfonia perfeita de três timbres que fizeram desaparecer as paredes frias da pensão e surgir, bem diante dos meus olhos, a praia de Icaraizinho. E bem ali, logo atrás das primeiras ondas que quebravam, estava a formosura que eu amei numas férias de janeiro, morena nativa, cacheada e molhada, tão líquida como na primeira vez que eu a tinha visto. O cascalho fugidio fazia igualzinho ao barulho das ondas, enquanto meu coração de homem citadino e recém-desempregado era invadido pela visagem do passado, espectro de assombrosa beleza, pululando no meu coração ressentido.

Desciam e subiam as ondas de cascalho, caía a chuva, cantava a mãe d’água e ela, um grande amor sem renda fixa, letra bonita ou certificado significativo de instrução, sereiava no mar mais bonito do Ceará, enquanto me olhava sorridente do meio dos sonhos e das memórias que eu não visitava há muito tempo.

Até que uma buzina me trouxe de volta à pensão acinzentada e alagada, tal qual os meus olhos antes da prenda. Foi quando eu massageei o peito e não senti, surpreso, o inchaço inflamado de mágoa ou tristeza.

Quais são as chances de, havendo um acidente em hora precisa, unirem-se três acordes em um teletransporte, para ver o velho salvando do novo que dói e para fazer desconfiar, muitos anos depois, que o mais simples poderia ter sido muito mais do que um bom amor, mas uma boa vida?

Pois se a manchete pudesse ser mudada um pouco só, eu teria sugerido e você teria concordado: “Caminhão carregado de cascalho tomba em rua do centro e salva a vida de um homem”. Haveria tempo de voltar?

***

Kah Dantas é cearense, professora e escritora. É autora do livro Boca de Cachorro Louco, tem alguns contos publicados e premiados em concursos literários nacionais e apresenta seus textos nos canais intitulados Conta, Kah!, no blog Orgasmo Santo e aqui no Leituras da Bel.
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Blog: Orgasmo Santo

Estevão Gomes (assina como Mártir) é um artista e ilustrador cearense. Explora e estuda as técnicas de grafiti e estêncil e trabalha numa série autoral de ilustrações chamada de “Xícaras de café com tinta”, desenvolvidas a partir de cenas cotidianas ou inspirações próprias.
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About the Author

Isabel Costa

Inquieta, porém calma. Isabel Costa, a Bel, é essa pessoa que consegue deixar o ar ao redor pleno de uma segurança incomum, mesmo com tudo desmoronando, mesmo que dentro dela o quebra-cabeças e as planilhas nunca estejam se encaixando no que deveria estar. É repórter de cultura, formada em Letras pela UFC e possui especialização em Literatura e Semiótica pela Uece. Formadora de Língua Portuguesa da Secretaria da Educação, Cultura, Desporto e Juventude de Cascavel, Ceará.

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