Por Kah Dantas*

Ilustração de Nílbio Thé

O menino era igualzinho àquele amor perdido no ano anterior.

Menos perdido do que afastado, é necessário esclarecer, conta do mal e do sofrimento que representou. E para deixar tudo ainda mais penoso, somava-se à assombrosa semelhança física o fato de que a criança era, perdão ao Deus no céu, perdão ao Deus na terra, um grande estorvo na sala de aula com quase trinta crianças e mais três diagnosticadas com outras síndromes e transtornos.

Virava cadeiras, arremessava peças de lego nas outras crianças, beliscava os meninos menores, mastigava papelão, chutava e socava os armários e puxava com força os cabelos das meninas quando elas estavam distraídas. Esta sala é o meu coração, refletia a mulher desolada.

E o menino magricela, igualzinho, igualzinho, do nariz grande à boca pequena, e do topo de seus olhos castanhos escuros e perscrutadores, era um lembrete sagrado, nas tardes de segunda-feira, daquilo que foi, daquilo que não foi e do que poderia ter sido.

Absoluta desgraça. Até no jeito viçoso de o cabelo liso cair sobre a testa branca e sobre um dos olhos, o menino imitava o homem.

E a peste ainda era metida à carinhosa. Ô, tia, eu te amo, e você?, dizia e perguntava, procurando abraço. E ela sorria um amarelo nervoso, meio fugindo, meio rezando, como quem exorciza um espírito maligno.

De jeito nenhum cooperavam o destino e a programação escolar para fazer cumprir o esquecimento necessário ao conserto integral das dores do coração, se é que isso havia no mundo.

Até que aconteceu, depois de dois meses de intensa agonia cerebral que, inevitavelmente, não se restringia ao espaço dentro dos muros da escola rural, que o menino foi transferido para outra unidade, uma que atendesse melhor as suas necessidades.

Não tardou, naturalmente, para que a vaga fosse reocupada por outra criança. A mulher não era religiosa, mas, assim que avistou o menininho novo no corredor, benzeu-se agradecida e fechou os olhos um segundo, muito aliviada. Era gorducho, moreno e de cabelos cacheados, uma belezinha de criança e muito educada, tinham lhe adiantado.

Abriu bem os braços, pronta para acolher o novo aluno com todo o amor que não tinha conseguido dar ao outro. Mas as narinas se anteciparam aos braços e o corpo da mulher murchou de imediato.

Puta que pariu, ela pensou, sentindo-se traída pela providência. O perfume. O perfume era igualzinho ao do amor perdido no ano anterior.

***

Kah Dantas é cearense, professora e escritora. É autora do livro Boca de Cachorro Louco, tem alguns contos publicados e premiados em concursos literários nacionais e apresenta seus textos nos canais intitulados Conta, Kah!, no blog Orgasmo Santo e aqui no Leituras da Bel.
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Instagram: @contakah
Tumblr: https://contakah.tumblr.com/
Blog: Orgasmo Santo

Nílbio Thé é ilustrador formado na primeira turma de artes plásticas do IFCE. Também é professor universitário, arteducador, escritor, roteirista e dramaturgo. Instagram: @mamilosestranhos

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Colaboradores LDB

Colaboradores do Blog Leituras da Bel. Grupo formado por professores, escritores, poetas e estudiosos da literatura.

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