Madá
*Por Zélia Sales

Ilustração: Jéssica Gabrielle Lima

Pela minha rua passava uma moça de rosto anguloso, cabelo comprido sempre preso num rabo de cavalo. Não sabia que nome tinha, se Ana, Raquel, Jennyfer ou Ágatha. Usava vestidos de alegres estampas e saias soltas, talvez para lhe alargar os passos, pois parecia estar sempre com pressa. Tinha os ombros largos, onde carregava sem nenhum esforço uma grande bolsa, parecida com essas que se levam pra praia. Imagino quantos sonhos carregasse ali, pois vinha sempre cantando, cantando alto. E ia interrompendo a cantiga e cumprimentando as pessoas que estavam nas calçadas, pois onde moro a rua é uma extensão das pequenas casas, é onde se lava e se estende roupa, se banha cachorro, se cata menino. Falava sem deter os passos, sem esperar resposta, acho que só pra anunciar “estou passando”. Voltava pra casa sempre no mesmo horário, no começo da manhã. Pelo que me consta, morava na favela que começa do outro lado do canal.

Ocupada nos meus afazeres, ouvia sua voz na cantiga, não muito afinada eu diria, mas que me contagiava. Eu corria até a janela. Às vezes, meu filho, que, como eu, tinha gosto de vê-la passar, me chamava, “Corre, mãe, lá vem aquela mulher que canta”. Nem sempre dava tempo, e eu a via desaparecer no fim da rua.

Certa vez parou em frente à casa amarela, ali tem uma bomba d’água na calçada. Não pediu licença, movimentou a manivela, a água brotou farta. Ela lavou os pés, os grandes pés, metidos numas alpercatas, e seguiu. A rua era sua, o mundo era seu.

As pessoas falam que havia alguns anos ela já passava na rua. Nesse tempo não cantava. Entregava água numa bicicleta cargueira. Tinha o cabelo curto, usava bermuda, um boné desbotado e se chamava Euclides.

Na semana passada, depois de uma certa ausência, eu a vi. Durante três dias esteve nos noticiários do meio-dia. Traumatismo craniano, fraturas expostas nos braços, as costas lanhadas. Dizem que foram quatro homens contra ela, que na verdade atendia pelo nome de Madalena, mas os amigos a chamavam de Madá.

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Zélia Sales

Já fez algumas conquistas na vida e diz que uma das mais ousadas é escrever, publicar, chegar ao leitor, que é sua maior motivação. É formada em Letras e atua na formação de leitores em escolas públicas. Nas voltas que o mundo deu, virou também dona de casa, esposa, mãe, escritora. Enquanto escreve, corrige redações, refoga um frango, procura os filhos pelo Whatsapp. Acredita que escrever é assumir uma conduta subversiva. Ela integra o livro Relicário – produção comemorativa pelos 30 anos do caderno Vida&Arte.

 

 

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Colaboradores LDB

Colaboradores do Blog Leituras da Bel. Grupo formado por professores, escritores, poetas e estudiosos da literatura.

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