“Em paralelo aos aspectos do caso Cesare Battisti abordados pela Justiça e pelo governo, segue intacto um problema que a esquerda -com aspas e sem aspas, e em suas incontáveis linhagens passadas e algumas presentes- jamais considerou para dar-lhe uma resposta definitiva. Em que circunstâncias o direito à rebeldia contra a opressão e os movimentos autodefinidos como revolucionários sociais podem matar sem trair as suas premissas?”

“Você acha que os assassinos de Gandhi, de John Kennedy e de Martin Luther King mereceriam ser considerados refugiados políticos no Brasil? A pergunta parece absurda, mas o fato é que todos esses crimes eram políticos. Como explicar que tanta gente de boa-fé julga que, por serem políticos, certos delitos deixam de ser crimes hediondos?”

O texto primeiro parágrafo é o início do artigo do jornalista Janio de Freitas. O que vem a seguir é o começo do texto do ex-ministro Rubens Ricupero. Ambos foram publicados na edição deste domingo [20/11/2009] do jornal Folha de S. Paulo – estão, na íntegra, reproduzidos abaixo. É uma contribuição ao debate em torno do caso.

Comentário

Neste blog já manifestei minha opinião sobre o assunto: a meu ver, a decisão de conceder refúgios é uma prerrogativa intransferível do governo.

Portanto, o julgamento, sobre a competência deveria ter precedido a “autorização” que o Supremo Tribunal Federal [STF] deu para que o italiano Cesare Battisti fosse extraditado – ao mesmo tempo em que devolvia a decisão ao Executivo.

A rigor, o caso não devia nem ter ido ao STF. De qualquer modo, agora definiu-se na Suprema Corte de quem é a competência para tais assuntos, o que não deixa de ser positivo.

Se Battisti é um criminoso comum ou seus crimes são políticos, é difícil retirar as camadas ideológicas com as quais o assunto foi recoberto para se chegar próximo a algo que se possa chamar de verdade.

O caso tem muitas “verdades”, como muitas mentiras também.

Seguem os dois artigos.

Em volta de Battisti
Jânio de Freitas – Folha de S. Paulo, 20/11/2009

EM PARALELO aos aspectos do caso Cesare Battisti abordados pela Justiça e pelo governo, segue intacto um problema que a esquerda -com aspas e sem aspas, e em suas incontáveis linhagens passadas e algumas presentes- jamais considerou para dar-lhe uma resposta definitiva. Em que circunstâncias o direito à rebeldia contra a opressão e os movimentos autodefinidos como revolucionários sociais podem matar sem trair as suas premissas?

Ao menos dois dos quatro crimes em que Cesare Battisti está condenado, na Itália, exemplificam o problema. São as duas mortes praticadas como represália porque as vítimas, em ocasiões anteriores, reagiram a assaltos, ou ações expropriatórias, do PAC (não os do PAC brasileiro nas concorrências, mas o de Battisti na Itália, Proletários Armados pelo Comunismo). As vítimas não eram partes de dispositivo algum no enfrentamento.

É difícil, senão impossível, encontrar nesse gênero de ato algum vínculo com ideologia de esquerda, propriamente, e algum traço de legitimidade, antes de identificá-lo como negação ao direito legítimo de defesa. A negação desse direito é parte da ideologia e das práticas de direita radical, e, em plano inferior à política, à concepção militar de luta.

A represália ao uso passado do direito de defesa, com morte da vítima, é vingança.

A incompatibilidade entre vingança e propósitos revolucionários de justiça foi reconhecida pela própria esquerda, ao adotar tribunais de militantes e julgamentos sumários. Mas, caso condenem um não “combatente” para o qual um assalto é um assalto, e não um ato com pretensões ideológicas ou políticas, a sentença de morte será ainda ato de vingança.

As variações nesse território são numerosas, muitas delas com presença relevante na história. Aqui está nas livrarias um desses casos, sob o título “Elza, a garota”, em que o trabalho muito competente do jornalista Sérgio Rodrigues narra o fato real do assassinato de uma jovem ingênua e inocente, que o comando do Partido Comunista apenas imaginou ser informante da polícia -e condenou-a à morte.

Se a esquerda ficou para a história, antes mesmo de discutir a si mesma sem paixões nada de esquerda, voltemos ao caso Battisti como demonstração de quanto o Supremo Tribunal Federal precisa ser discutido dentro e fora dele.

Cada nova palavra de integrantes do STF sobre e depois do julgamento da extradição de Battisti atestou e agravou o espanto do que lá ocorreu. Mas, neste momento, interessa sobretudo a explicação do ministro Ayres Britto para os seus votos vistos como contraditórios.

Assim argumenta ele por dar um voto pela aprovação do Supremo à extradição de Battisti e, mais tarde, um voto para transferir ao presidente da República a decisão de extraditar ou não, a despeito do entendimento do tribunal:

“O Supremo Tribunal Federal decidiu pela extraditibilidade, mas a extradição é um ato entre países, de política internacional, que é atribuição do presidente da República”.

Não diria que Ayres Britto se confunde, mas é evidente que nos confunde. Quando uma decisão do Supremo depende, para seu cumprimento, de ato administrativo do Executivo, sua execução é sempre delegada a este Poder e, portanto, ao presidente da República, seu chefe.

Delegar a execução não se confunde com transferir a responsabilidade de decidir: a demarcação e a expulsão de alheios da Reserva Indígena Raposa/Serra do Sol, por exemplo, eram de atribuição do presidente da República e dele para seus prepostos, mas nem por isso o STF transferiu-lhe a responsabilidade de decidir fazê-la ou não. Como lhe compete, o STF definiu e deu a decisão com base no voto do relator -ministro Carlos Ayres Britto.

Extradição e crime político
Rubens Ricupero – Folha de S. Paulo, 20/11/2009

VOCÊ ACHA que os assassinos de Gandhi, de John Kennedy e de Martin Luther King mereceriam ser considerados refugiados políticos no Brasil? A pergunta parece absurda, mas o fato é que todos esses crimes eram políticos. Como explicar que tanta gente de boa-fé julga que, por serem políticos, certos delitos deixam de ser crimes hediondos?

Tomemos outro caso. O sequestro de Abilio Diniz foi efetuado por chilenos do Movimento de Esquerda Revolucionária, que alegaram motivos políticos, apesar de que, na época (dezembro de 1989), o Chile voltara a ser uma democracia plena. Rejeitado o argumento, eles foram condenados, sendo expulsos para cumprir o resto da pena no país de origem em 1999.

A invocação de causa política não basta, portanto, para retirar de um ato o caráter de crime merecedor de sanção nem para conceder ao autor o benefício de refugiado. Em casos extremos, pode-se compreender o uso de violência contra regimes tirânicos e opressivos que não deixam outro caminho à restauração dos direitos. É quase o equivalente ao direito da legítima defesa de parte da população.

Por essa razão, as normas internacionais só admitem como refugiado alguém que não possa ser enviado ao país de origem por existir forte presunção de que sofrerá perseguição de caráter político, racial ou religioso. A presunção se baseia, por sua vez, na existência de conflito, guerra civil ou ditadura e suspensão das garantias individuais no país para onde seria devolvido.

Tal premissa obviamente não se aplica à Itália, país que desde 1945 é um Estado de Direito e uma democracia das mais tolerantes em matéria de liberdade política. Somente ignorância ou má-fé poderia considerar perseguição política o cumprimento de pena a que foi condenado em processo legal pelos tribunais italianos o autor de quatro homicídios. Seria até irônico, se não fosse ridículo, acusar de instrumento de perseguição uma Justiça que está processando o próprio todo-poderoso primeiro-ministro Berlusconi! Oxalá tivéssemos nós, no Brasil, uma Justiça com a metade da independência perante o Executivo que tem o Judiciário italiano!

Os extremistas que atuaram na Itália desde os “anos de chumbo” escolheram em geral como vítimas políticos de centro-esquerda ou de esquerda democrática, e não a direita fascista. O caso mais notório foi o sequestro pelas Brigadas Vermelhas do ex-primeiro ministro Aldo Moro, o grande líder da esquerda da Democracia Cristã. Depois de longo cativeiro, ele foi assassinado friamente, a fim de impedir que promovesse uma aliança para que o Partido Comunista viesse a fazer parte do governo, o que se chamava então de “compromisso histórico”.

No seu radicalismo divorciado das massas, os brigadistas pensavam que, ao evitar a chegada dos comunistas ao poder, criariam as condições para desencadear uma revolução proletária violenta.

Acabou acontecendo exatamente o oposto. O crime (esse e outros como os do refugiado no Brasil) provocaram tal repulsa no povo que empurraram a Itália cada vez mais para a direita. A esquerda italiana sempre condenou o extremismo terrorista e não compreende que o Brasil lhe conceda tratamento leniente. Talvez porque aprendeu, ao contrário de membros do governo brasileiro, que a leniência com o extremismo equivale ao suicídio da esquerda democrática.

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RUBENS RICUPERO, 72, diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda (governo Itamar Franco). rubric@uol.com.br