O deputado estadual Nelson Martins (PT), por meio de seu Twitter [@NelsonMartinsCE], propõe o movimento #orgulhode sernordestino, em contraposição às mensagens preconceituosas, xenófobas e criminosas contra os nordestinos que se seguiram à eleição de Dilma Rousseff (PT) à presidência no país.

Se ficar como uma hashtag no Twitter, vá lá – se as mensagens não tiverem o mesmo tom em sentido contrário. Mas organizar um movimento nesses moldes, creio que é equivocado. [hashtag é uma espécie de “etiqueta”, antecedida do símbolo # ,com a qual se marcam alguns assuntos no Twitter – clicando-se nela chega-se a todos os posts marcados sobre o assunto.]

É equivocado e pode ser perigoso. Existe diferença em sentir orgulho por algo, não ter vergonha de sua origem – e transformar isso em um “movimento”,  que pode incentivar um clima de apartação no Brasil. Algo que vem sendo superado cada vez mais – e seus resquícios não devem ser combatidos com as mesmas armas usadas pela ignorância.

O que devemos reafirmar é que o Nordeste vem adquirindo um papel cada vez mais importante no país, que a região não mais padece do complexo de vira-latas – e que faz valer a suas propostas de modo assertivo e independente.

Mas o simbolismo disso não é a “separação” do restante do país, pelo contrário, é a integração cada vez maior – e ela somente será possível em bases igualitárias e justas, de modo que todo o povo possa se irmanar, compartilhando igualmente da riqueza e da beleza deste país.

Em seguida, dois textos que escrevi sobre o assunto “Por que não me orgulharia” e “Sim, o Nordeste existe”. São um pouco longos, mas fica à disposição.

Por que não me orgulharia?

Plínio Bortolotti

O POVO – edição de 15 de maio de 2009

O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. Fernando Pessoa (pelo heterônimo Alberto Caeiro)

O respeitado cineasta Rosemberg Cariry escreveu o artigo Por que não me orgulho, uma referência direta – não citada no texto – à campanha sobre autestima cearense, que O POVO está promovendo. No texto (caderno Vida & Arte, 11/5) Rosemberg desfia argumentos para negar e mesmo combater o orgulho de ser cearense.

Ele começa dizendo que é o acaso que nos faz nascer aqui ou alhures, o que procede. Mas o mesmo acaso acontece quando somos paridos ou quando geramos. E por que amamos tanto os nossos pais? Por que nos orgulham os nossos filhos? Portanto, em muitos casos, existem outras forças a contribuírem para que se transforme em amor e orgulho o que era apenas “acaso”.

Depois, ele diz que se alguém se orgulhasse ser branco – o que também é uma contingência – seria racismo. OK, mais uma vez concordo. Em seguida, pergunta a que “cheira” ter orgulho de ser negro, sugerindo que seria tão preconceituoso quanto vangloriar-se de ser branco. Aqui, discordamos.

Os brancos não sofrem preconceito e nem foram submetidos à escravidão por causa da cor da pele. Portanto, um estudo antropológico não só explicaria como justificaria o “orgulho de ser negro”, como uma proposta de afirmação. Por isso, não é ofensivo um ouvir um “branco azedo”, mas o é usar a palavra “negro” como se fosse xingamento. O mesmo se poderia dizer de outras minorias sociais.

Mas Rosemberg confessa que se sente “bem” sendo cearense. Diz que seu cinema é voltado para revelar a “pluralidade” da cultura cearense, buscando captar a herança de outros povos “para, a partir daí, se reinventar”. É verdade, podemos dizer que a obra de Cariry é uma ode ao Ceará, um elogio ao seu caldeirão de etnias e culturas e o que daí resultou.

Mas o fato é que Rosemberg não está sozinho na dificuldade em assumir o orgulho de ser cearense. Junto dele está um setor importante da academia, que não tem a coragem intelectual que teve Rosemberg, de expor seus argumentos à luz do dia.

Argumentos diferentes, diga-se, dos apresentados pelo cineasta. Esses “intelectuais” preferem o desprezo à cultura popular, a ironia ao modo de falar “errado” do sertanejo – demonstrando preconceito linguístico inaceitável – e a maledicência intramuros.

O interessante é que as pessoas simples, as mais castigadas pelas forças da natureza e pelos problemas sociais, essas não têm vergonha de manifestar o seu orgulho pela terra em que nasceram ou adotaram. Agora, um certo setor da “intelectualidade” cearense faz questão de mostrar-se divorciado de seu próprio povo. (Crítica esta, justiça seja feita, que não cabe a Rosemberg.)

Mas, caro Antônio Rosemberg de Moura, me explique uma coisa. Por qual esconsa razão, você, que não se orgulha de ser cearense, incorporou ao seu nome o nome de sua aldeia? (Aquela mesma, que só se deixa no último pau-de-arara.) Foi um ato inconsciente, um arroubo da juventude, ou um chamado atávico em direção àquilo que – sempre – nos alimenta, nos forma e nos fortalece?
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Sim, o Nordeste existe
Plínio Bortolotti

O POVO – edição de 24/7/2010

Sei que pode ser temerário, mas vou me atrever a debater com o professor Eduardo Diatahy B. de Menezes, a partir do ensaio que ele publicou no Anuário do Ceará deste ano, sob o título Existe o Nordeste? Histórico da invenção de uma região.

Faço-o animado pelo próprio professor que, vez ou outra, elogia os modestos artigos que publico nestas páginas. Sei que, desta vez, em vez de elogios, arrisco-me a levar umas lambadas, mas faz parte dos riscos da profissão.

Não vou – nem poderia – contestar o profundo levantamento que ele fez para mostrar como foi a “construção simbólica” da região que se convencionou chamar de Nordeste. O que vou fazer é indagar algumas das conclusões a que ele chega a partir de seu estudo.

Para ele, essa “construção” foi feita com a “ideia-força” de um Nordeste sob uma realidade “negativa, discriminatória, que o concebe como o espaço do passado, do atraso, da violência do fanatismo, da miséria persistente, etc.; e da imagem de um Sudeste e Sul valorizada positivamente como o lugar do futuro, do progresso, da abundância, da racionalidade, da modernidade, etc.”

Segundo os estudos do professor, o Nordeste “não existia” até, pelo menos, 1870 – e que a sua construção simbólica, do modo reproduzido acima, teria se dado entre essa data até o ano de 1930.

Diatahy se pergunta: “Que faz, por exemplo, com que hoje a produção de um historiador sudestino seja nacional e a de um nordestino regional? Ou que uma mentalidade mediana pense, e às vezes explicite, que fora do eixo Rio-São Paulo não existe vida mental no país?”

Acrescenta o professor: “É preciso, contudo, sublinhar que tanto as elites quanto os intelectuais da ‘região’ não apenas se deixaram envolver no mesmo círculo hermenêutico e semiótico, fazendo-se nordestinizados, como ainda tornando-se entusiasmados produtores desse imaginário.”

Ao fim de seu texto, o professor Diatahy faz uma exortação para que nos livremos das “representações excludentes”, lamentando que “pensar automaticamente em algo que é representando pela fixidez de imagens estereotipadas – o martírio secular de Vidas Secas, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, João Ubaldo e baianidade, belas praias investidas pela indústria turística, carne seca e paçoca, cangaço e fanatismo, mulatas de Jorge Amado e Deus e o Diabo na Terra do Sol, flagelados e romeiros, jangadas e coqueiros, narrativa popular em verso e forró pé-de-serra, rendas e labirintos, artesanato e folclore, etc. – é querer congelar essa ‘realidade’ ou reforçar a mesmice de uma invenção a serviço de dispositivos de poder e de saber, ‘superiores’ e ‘modernos’”.

Aos argumentos.

1. Na verdade, tudo o que é humano é construção simbólica – para o bem e para o mal – e isso é inescapável. É bom lembrar que existem outros regionalismos, como o do Sul, por exemplo – do “homem da fronteira”, etc.

2. Os estereótipos – há os “bons” e os “maus” – quando não viram simples caricatura podem ajudar (veja bem: podem ajudar) a compreender algumas características de um povo ou de uma região. O estereótipo surge, muitas vezes, de uma base “real”. A hospitalidade, por exemplo, é um estereótipo que se aplica aos cearenses (como também de que o cearense é o “judeu do Brasil”). Pense se isso não explica um pouco: quantas vezes um amigo seu, paulista, foi apanhá-lo no aeroporto? E, quantas vezes você fez isso pelos seus amigos que aqui chegam?

3. Apesar de algumas manifestações tradicionais (forró, renda, culinária, etc.) não me parece que os que as defendem querem-nas “congelar” no passado, mas preservar uma manifestação simbólica, que faz parte da história. Isso não impede que as novas gerações de nordestinos as atualizem. Vejam a beleza do mangue beat, com a sua mistura de ritmos regionais com música eletrônica. Os meninos, nordestinos e sudestinos, ficam doidos com os rapazes de Recife. Observem o forró eletrônico (que muitos detestam) com sua antropofagia, pondo no liquidificador “hits” internacionais para submetê-los a ritmos dançantes “tradicionais”.

O que estou tentando dizer é o seguinte: a “construção” – nascida com um caráter negativo, segundo o estudo de Diatahy – reverteu esse aspecto passando a ser uma ideia-força positiva. As “construções” podem se alterar e não é incomum fugirem da lógica de seus construtores.

Hoje, pouca gente se envergonha ou se sente diminuído por ser amostrado como nordestino. E isso não é pouca coisa, pois dá um sentido de identidade aos povos da região.

Vou dar dois exemplos singelos que acontecerem comigo que mostram – posso dizer a transcendência – dessa identificação.

A primeira, foi em Brasília, alguns anos atrás. Estava em um restaurante, tipo self service, e peço ao caixa para guardar a minha pasta de mão. Ao me dirigir para o pagamento, ele me devolve a pasta, sorri e afirma: “Você é lá da terrinha”. Olho-o interrogativamente e ele aponta um bordado, de não mais de dois centímetros, na minha pasta: “Ceará”. E pergunta: “Está chovendo por lá?”

Doutra feita, em um hotel de São Paulo, onde transcorria a reunião da Associação Nacional de Jornais (ANJ). Aproximo-me de uma máquina de café, onde atendia um rapaz. Não havia fila organizada, as pessoas se aglomeravam no balcão e ele servia os que estavam mais próximos. Ao me ver, ele levanta uma xícara por cima das cabeças; eu pego, meio constrangido por furar a fila. E ele, como justificativa, aponta para o meu crachá – no qual, abaixo do meu nome, a inscrição: O POVO, Fortaleza, Ceará – e diz: “Primeiro os conterrâneos”, arrancando algumas risadas simpáticas dos que estavam próximos. Quando o movimento diminui, troco algumas palavras com ele: me diz ser de Morada Nova, como o chefe dos garçons, que dava preferência para contratar moradonovenses, a maioria da equipe.

Agora, me digam: isso ocorreria no encontro de dois “sudestinos”?

Nós, brasileiros, não temos o hábito de nos identificarmos como “americanos” e nem mesmo como “sul-americanos”, mas consideramos os povos oriundos de qualquer país da África como africanos. E, convenhamos, não existe maior “construção simbólica” do que a África.

Agora, vejam como pode adquirir tom positivo essa “construção” africana. Na Copa do Mundo, ao perder a África do Sul, os sul-africanos continuaram a torcer pelos países de seu continente, até cair a resistente seleção de Gana. Ou seja, mesmo que seja uma identificação mínima, talvez, fugaz, isso deve ter-lhes dito algo: nós somos um povo que têm algo em comum.

Esses exemplos soam positivos ou negativos? Faríamos nós o mesmo com a seleção da Argentina, por exemplo?

O que eu quero dizer é que considero equivocado que tomemos como depreciativa a denominação de nordestinos ou o sentimento de nordestinidade e de cearensidade (que também é uma “construção”). Essa tornou-se uma força identitária altamente positiva e impulsionadora de ações nas mais diversas áreas.

Como diz o professor Diatahy, creio que apenas as “mentalidades medianas”, ou abaixo disso, veem o Nordeste com uma terra inóspita e um lugar árido de inteligências.