Arte de Hélio Rôla (clique para ampliar)

Meu artigo publicado na edição de hoje (26/5/2011) no O POVO.

A superação do complexo de vira-lata
Plínio Bortolotti

O “complexo de vira-lata” era explicado pelo autor da frase, o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues, como “a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo” – ou mais ao seu estilo: “O brasileiro é um narciso às avessas, que cospe na própria imagem”.

Mas, não resta dúvida, o país vem superando tal complexo. O Brasil é hoje um dos principais atores no cenário internacional. Faz parte do poderoso Bric (Brasil, Rússia e China)*, países que puxam o desenvolvimento mundial, ganhando cada vez mais poder nas decisões globais.

E não se trata apenas de prestígio econômico, o desenvolvimento – ao contrário do que ocorria até passado recente – vem alcançando setores antes excluídos dos benefícios do crescimento econômico.

Se isso é indiscutível, quando se trata de Brasil, dentro do país, o Nordeste vem deixando para trás velhos conceitos negativos que lhe perseguiam. Em julho do ano passado escrevi artigo para este jornal no qual afirmava que Nordeste deixava de ser “ideia-força” negativa para se tornar “ideia-força” positiva. (Veja abaixo)

Neste mês de maio, a revista britânica “The Economist”, publicação com tiragem de quatro milhões de exemplares – respeitada no mundo inteiro, à direita e à esquerda -, apresentou o Nordeste como “a estrela econômica do Brasil”. Anotou que seu PIB cresce mais do que o do Brasil, mostrou o fortalecimento de sua infraestrutura, entre outros dados positivos. Mas registrou uma de suas “fraquezas”: a baixa escolaridade.

Esse, de fato, é um problema que leva tempo para ser superado, mas creio que se estão buscando caminhos, em todos os níveis de escolaridade. Um desses exemplos é a Universidade de Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab), em cuja aula inaugural compareci ontem, na cidade de Redenção, para testemunhar um fato histórico.

[*Cometi alguns equívocos em relação à sigla, veja em “Comentários” as observações do colega do O POVO, Marcos Robério, a quem agradeço.]

Veja o artigo “Sim, o Nordeste existe”.

Sim, o Nordeste existe
Plínio Bortolotti
O POVO – edição de 24/7/2010

Sei que pode ser temerário, mas vou me atrever a debater com o professor Eduardo Diatahy B. de Menezes, a partir do ensaio que ele publicou no Anuário do Ceará deste ano, sob o título Existe o Nordeste? Histórico da invenção de uma região.

Faço-o animado pelo próprio professor que, vez ou outra, elogia os modestos artigos que publico nestas páginas. Sei que, desta vez, em vez de elogios, arrisco-me a levar umas lambadas, mas faz parte dos riscos da profissão.
Não vou – nem poderia – contestar o profundo levantamento que ele fez para mostrar como foi a “construção simbólica” da região que se convencionou chamar de Nordeste. O que vou fazer é indagar algumas das conclusões a que ele chega a partir de seu estudo.

Para ele, essa “construção” foi feita com a “ideia-força” de um Nordeste sob uma realidade “negativa, discriminatória, que o concebe como o espaço do passado, do atraso, da violência do fanatismo, da miséria persistente, etc.; e da imagem de um Sudeste e Sul valorizada positivamente como o lugar do futuro, do progresso, da abundância, da racionalidade, da modernidade, etc.”

Segundo os estudos do professor, o Nordeste “não existia” até, pelo menos, 1870 – e que a sua construção simbólica, do modo reproduzido acima, teria se dado entre essa data até o ano de 1930.
Diatahy se pergunta: “Que faz, por exemplo, com que hoje a produção de um historiador sudestino seja nacional e a de um nordestino regional? Ou que uma mentalidade mediana pense, e às vezes explicite, que fora do eixo Rio-São Paulo não existe vida mental no país?”

Acrescenta o professor: “É preciso, contudo, sublinhar que tanto as elites quanto os intelectuais da ‘região’ não apenas se deixaram envolver no mesmo círculo hermenêutico e semiótico, fazendo-se nordestinizados, como ainda tornando-se entusiasmados produtores desse imaginário.”

Ao fim de seu texto, o professor Diatahy faz uma exortação para que nos livremos das “representações excludentes”, lamentando que “pensar automaticamente em algo que é representando pela fixidez de imagens estereotipadas – o martírio secular de Vidas Secas, Rachel de Queiroz e Graciliano Ramos, João Ubaldo e baianidade, belas praias investidas pela indústria turística, carne seca e paçoca, cangaço e fanatismo, mulatas de Jorge Amado e Deus e o Diabo na Terra do Sol, flagelados e romeiros, jangadas e coqueiros, narrativa popular em verso e forró pé-de-serra, rendas e labirintos, artesanato e folclore, etc. – é querer congelar essa ‘realidade’ ou reforçar a mesmice de uma invenção a serviço de dispositivos de poder e de saber, ‘superiores’ e ‘modernos’”.

Aos argumentos

1. Na verdade, tudo o que é humano é construção simbólica – para o bem e para o mal – e isso é inescapável. É bom lembrar que existem outros regionalismos, como o do Sul, por exemplo – do “homem da fronteira”, etc.

2. Os estereótipos – há os “bons” e os “maus” – quando não viram simples caricatura podem ajudar (veja bem: podem ajudar) a compreender algumas características de um povo ou de uma região. O estereótipo surge, muitas vezes, de uma base “real”. A hospitalidade, por exemplo, é um estereótipo que se aplica aos cearenses (como também de que o cearense é o “judeu do Brasil”). Pense se isso não explica um pouco: quantas vezes um amigo seu, paulista, foi apanhá-lo no aeroporto? E, quantas vezes você fez isso pelos seus amigos que aqui chegam?

3. Apesar de algumas manifestações tradicionais (forró, renda, culinária, etc.) não me parece que os que as defendem querem-nas “congelar” no passado, mas preservar uma manifestação simbólica, que faz parte da história. Isso não impede que as novas gerações de nordestinos as atualizem. Vejam a beleza do mangue beat, com a sua mistura de ritmos regionais com música eletrônica. Os meninos, nordestinos e sudestinos, ficam doidos com os rapazes de Recife. Observem o forró eletrônico (que muitos detestam) com sua antropofagia, pondo no liquidificador “hits” internacionais para submetê-los a ritmos dançantes “tradicionais”.

O que estou tentando dizer é o seguinte: a “construção” – nascida com um caráter negativo, segundo o estudo de Diatahy – reverteu esse aspecto passando a ser uma ideia-força positiva. As “construções” podem se alterar e não é incomum fugirem da lógica de seus construtores.

Hoje, pouca gente se envergonha ou se sente diminuído por ser amostrado como nordestino. E isso não é pouca coisa, pois dá um sentido de identidade aos povos da região.

Vou dar dois exemplos singelos que acontecerem comigo que mostram – posso dizer a transcendência – dessa identificação.

A primeira, foi em Brasília, alguns anos atrás. Estava em um restaurante, tipo self service, e peço ao caixa para guardar a minha pasta de mão. Ao me dirigir para o pagamento, ele me devolve a pasta, sorri e afirma: “Você é lá da terrinha”. Olho-o interrogativamente e ele aponta um bordado, de não mais de dois centímetros, na minha pasta: “Ceará”. E pergunta: “Está chovendo por lá?”

Doutra feita, em um hotel de São Paulo, onde transcorria a reunião da Associação Nacional de Jornais (ANJ). Aproximo-me de uma máquina de café, onde atendia um rapaz. Não havia fila organizada, as pessoas se aglomeravam no balcão e ele servia os que estavam mais próximos. Ao me ver, ele levanta uma xícara por cima das cabeças; eu pego, meio constrangido por furar a fila. E ele, como justificativa, aponta para o meu crachá – no qual, abaixo do meu nome, a inscrição: O POVO, Fortaleza, Ceará – e diz: “Primeiro os conterrâneos”, arrancando algumas risadas simpáticas dos que estavam próximos. Quando o movimento diminui, troco algumas palavras com ele: me diz ser de Morada Nova, como o chefe dos garçons, que dava preferência para contratar moradonovenses, a maioria da equipe.

Agora, me digam: isso ocorreria no encontro de dois “sudestinos”?

Nós, brasileiros, não temos o hábito de nos identificarmos como “americanos” e nem mesmo como “sul-americanos”, mas consideramos os povos oriundos de qualquer país da África como africanos. E, convenhamos, não existe maior “construção simbólica” do que a África.
Agora, vejam como pode adquirir tom positivo essa “construção” africana. Na Copa do Mundo, ao perder a África do Sul, os sul-africanos continuaram a torcer pelos países de seu continente, até cair a resistente seleção de Gana. Ou seja, mesmo que seja uma identificação mínima, talvez, fugaz, isso deve ter-lhes dito algo: nós somos um povo que têm algo em comum.

Esses exemplos soam positivos ou negativos? Faríamos nós o mesmo com a seleção da Argentina, por exemplo?
O que eu quero dizer é que considero equivocado que tomemos como depreciativa a denominação de nordestinos ou o sentimento de nordestinidade e de cearensidade (que também é uma “construção”). Essa tornou-se uma força identitária altamente positiva e impulsionadora de ações nas mais diversas áreas.

Como diz o professor Diatahy, creio que apenas as “mentalidades medianas”, ou abaixo disso, veem o Nordeste com uma terra inóspita e um lugar árido de inteligências.

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