Reprodução da coluna “Menu Político”, caderno “People”, edição de 22/2/2015 do O POVO.

IlustraDoutora Silvana contra Sodoma e Gomorra
Plínio Bortolotti

Depois de protestos do deputado licenciado e secretário das Cidades, Ivo Gomes (Pros), o presidente da Assembleia Legislativa, Zezinho Albuerque (Pros) retirou o convite que fizera à Doutora Silvana para que ela assumisse a presidência da Comissão de Direitos Humanos. Além da poderosa intervenção de Ivo, havia contra ela a antipatia dos movimentos de defesa dos direitos humanos, devido à aversão à homossexualidade, tendo Silvana declarado ser contra a união homoafetiva porque “Deus não admite o casamento gay, acabou com Sodoma por causa disso”. A mim sempre espanta essa linha direta que alguns carolas têm com Deus, a ponto de saber o que ele pensa. Entanto, sigamos em frente com a história para ver a qual parte a doutora se refere.

Segundo a bíblia, Deus destruiu Sodoma e Gomorra devido ao “imenso clamor” que se levantava sobre as cidades, pelo “pecado muito grande” cometido por seus habitantes (Gênese 18, 20). Uma das versões para esse “clamor”, certamente é a isso que a Doutora Silvana se refere, é que seus moradores seriam chegados à “perversão sexual”, especialmente à relação entre homens, isto é, o coito anal. (Daí a origem das palavras “sodomia” e “sodomita”.)

O justo
Na tentativa de salvar as cidades, Abrão lembra a Deus que que o justo não poderia perecer com o ímpio (Gên 18, 23), e fica regateando qual o número de “justos” seria necessário para que o Senhor desistisse do massacre. Deus diz a Abrão que se houvessem dez homens bons, ele pouparia as cidades. Como Ele enviou os dois anjos para o serviço, supõe-se que o número de “justos” era inferior a dez.

Mas pelo menos um “homem bom” existia: Lot. E é para a casa dele que os dois enviados do Senhor se encaminham. Estando lá, os homens da cidade cercam a casa de Lot e exigem que ele entregue os visitantes: “Conduze-os a nós para que os conheçamos” (Gên 19, 5), exige a turba. (“Conhecer”, no sentido bíblico, significa manter relações sexuais.)

E o que faz Lot, o homem bom, o justo? Propõe o seguinte aos agressores: “Suplico-vos, meus irmãos, não cometeis este crime. Ouvi: tenho duas filhas que são ainda virgens, eu vo-las trarei, e fazei delas o que quiserdes” (Gên 19, 7,8). Ou seja, Lot quer entregar duas filhas “virgens” ao estupro coletivo para salvar os homens de crime semelhante. Mas, milagrosamente, os dois enviados conseguem se safar e oferecem a Lot e à sua família, a mulher – que ao fugir, contrariando a ordem dos anjos olha para traz e vira estátua de sal – e às duas filhas, a oportunidade de escapar do genocídio divino.

Na montanha
Lot passa então a morar em uma montanha com as duas filhas. A mais velha observando que “não há homem algum na região” (Gên 19, 31), bola um plano para engravidar. Propõe que elas embebedem o pai e durmam com ele para conseguirem o intento. E assim fazem as duas, uma de cada vez. Lot mantém relação sexual com uma “sem que percebesse, nem quando ela se aproximou, nem quando se levantou” (Gên 19, 33), e depois com outra, da mesma forma. Mas vamos combinar: é preciso ser muito “distraído”, mesmo bêbado, para manter relação sexual com duas filhas sem notar.

Portanto, é preciso dizer à Doutora Silvana que, aqueles que interpretam literalmente os textos sagrados, sempre terão dificuldade em justificar determinadas passagens: escandalizam-se com o casamento gay, mas consideram normal que um pai entregue as filhas ao estupro ou que tenha relação sexual com elas (?). Por isso, os fundamentalistas escolhem alguns trechos, omitem outros, e tentam assustar casuais ignorantes com o fogo sagrado.

NOTAS

Filhos
Do incesto cometido por Lot com as filhas nasceram duas crianças, uma de cada irmã. O da mais velha recebeu o nome de Moab (saído do pai): “Este é o pai dos moabitas, que vivem ainda hoje”. O filho da mais nova chamou-se Bem-Ami (filho de meu parente): “Este é o pai dos amonitas, que vivem ainda hoje” (Gên 19, 37,38).

Doutor Silvana
Vez por outro anoto como a mente faz conexões, aparentemente, sem sentido. Leitor de gibis na infância, um dos meus “vilões” preferidos era o Doutor Silvana, um cientista genial, porém insano, inimigo do Capitão Marvel.

Crédito
Consultei a Bíblia Sagrada, 108ª edição, do Centro Bíblico Católico, São Paulo, edições Ave-Maria, 1997.

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