Reprodução da coluna “Menu Político”, caderno “People”, edição de 21/2/2016 do O POVO.

CarlusSoldados de Salamina: o segredo dos teus olhos
Plínio Bortolotti

Dias atrás, não me lembro mais por que – talvez assistindo a um filme – me ocorreu escrever um artigo, pois alguma coisa me lembrara de uma frase repetida por um dos personagens de um livro que lera há dez anos, Soldados de Salamina, do espanhol Javier Cercas: “Na última hora é sempre um pelotão de soldados que salva a civilização”.

Na minha memória havia ficado como se fora dita por um partidário republicano da Guerra Civil Espanhola (é disso que o livro trata) reconhecendo que a brutalidade é necessária se for para conter um mal maior.

Claro que o conceito de “civilização” varia, dependendo de quem pronuncia a palavra. Para uns, a civilização é a aristocracia, os “bons costumes”, um governo em que a elite dita as normas para a massa ignara, uma sociedade hierarquizada, na qual “cada um sabe o seu lugar”, como se fora um destino inamovível adredemente traçado pela vontade dos deuses.

Para outros, entre os quais me incluo, civilização representa a busca obsessiva por um mundo mais justo, mais igualitário, fundado na democracia e no respeito aos direitos humanos.

Pois bem, mas ao procurar na minha modesta biblioteca, revirando-a de cima abaixo, não encontrei o livro. Depois me esqueci do que iria escrever.

(Sumir livros na minha biblioteca não é incomum. Por vezes, eles se escondem uns por baixo dos outros; por outras fazem troça, trocando de lugar; mais raro, desaparecem porque os emprestei: e, de raiva, não voltam. E foi o que aconteceu com Soldados de Salamina, o que descobri xeretando as estantes da casa de minha filha. Claro que o peguei de volta, depois de uma justificada descompostura que lhe passei, por não me devolver o livro, aproveitando-se do meu esquecimento.)

Comecei a relê-lo e fiquei chateado por ver que a frase era dita, logo nas primeiras páginas, por José Antonio Primo de Rivera, um dos primeiros partidários da Falange (o partido fascista espanhol, que leva o país à guerra civil, à derrubada da República e à instalação da ditadura franquista). Portanto, a “civilização” para ele, era o velho mundo aristocrático, que parecia desmoronar.

O livro conta a história de Rafael Sánchez Mazas, fundador da Falange, o primeiro e mais importante teórico do fascismo na Espanha. Cercas fica obcecado por um episódio da vida de Sánchez Mazas: ele escapara de um fuzilamento das tropas republicanas, salvo por um soldado comunista, o pior inimigo dos fascistas.

Quando as tropas republicanas estavam batendo em retirada, desordenadamente, no fim a guerra civil, queimavam pontes para evitar o avanço do inimigo e fuzilavam seus prisioneiros. Sánchez Mazas é encaminhado para um fuzilamento coletivo, mas quando começam os tiros ele consegue escapar. Cercas narra assim o episódio:

“…as balas apenas roçaram o seu corpo (de Sanchéz Mazas), ele aproveitou-se da confusão e correu a esconder-se no bosque. De lá, ouviu vozes dos milicianos tratando de acossá-lo. Um deles o descobriu, por fim, e o fitou nos olhos (com o fuzil mirando-lhe a cabeça). Em seguida gritou aos seus companheiros: ‘Por aqui não tem ninguém!’ Deu meia-volta e se foi.”

O próprio Sánchez Mazas contaria essa história muitas vezes, a seus filhos e amigos, dizendo sempre que nunca esqueceria os olhos do miliciano que poupara a sua vida.

O que move a narrativa de Cercas é encontrar esse soldado, 60 anos depois do acontecido, para saber o que teria passado na cabeça daquele jovem comunista ao decidir poupar a vida de um inimigo – e não um inimigo qualquer -, em uma das guerras mais sangrentas do século XX.

NOTAS

Pelotão
Ao fim da releitura, de madrugada, uma das passagens o autor do livro anota que talvez Primo de Rivera estivesse correto ao dizer que “na última hora” é um pelotão de soldados que salva a civilização, lembrando que foi exatamente assim que a loucura de Hitler foi contida.

Batalha
O título do livro faz referência à Batalha de Salamina (480 a.C.), que opôs os exércitos da Pérsia (atualmente o Irã) e da Grécia. Os gregos vencem a guerra, impedindo que os persas ocupassem o continente europeu. Se isso tivesse ocorrido a história da Europa seria contada hoje nos termos de uma civilização de maioria muçulmana.

Livro
Os fatos históricos são narrados de forma romanceada no livro – mas o autor mantém o nome real de muitos personagens. Inclusive o dele, Javier Cercas, o jornalista narrador da história.

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