Reprodução do artigo publicado na editoria de Opinião, edição de 19/10/2017 do O POVO.

Um tapa na cara de todos nós

Países democráticos em todo o mundo protegem o mandato de congressistas, pois é prerrogativa conferida à atividade; não um privilégio pessoal. Acontece que, no Brasil, as prerrogativas, de tão amplas, tornaram-se refúgio para o impune cometimento de crimes.

Se um congressista, por exemplo, der um tiro na cara de um passante, em plena luz do dia, ele não poderá ser preso. A prisão somente é permitida em flagrante de crime inafiançável (hediondo, por exemplo). E mesmo assim, em 24 horas o STF terá de submeter o processo à sua respectiva casa, que, por maioria simples, poderá devolver o criminoso às ruas e ao mandato (art. 53, parágrafo 2º da Constituição). Assim, o indigitado ficaria livre, inclusive, para ameaçar testemunhas. Desse modo, o detentor da função – e não ela mesma – torna-se intocável.

Vejam o caso do senador Aécio Neves (PSDB). Ele foi gravado pedindo R$ 2 milhões a Joesley Batista, dono da JBS; um primo enviado pelo senador (“Um que a gente mata ele antes de fazer delação”) foi filmado recolhendo o suborno. Frente a esse crime comum, a primeira turma do STF resolveu afastar Aécio do mandato.

O artigo 53 refere-se à prisão de parlamentares e nada especifica acerca de medidas cautelares. Assim, se o STF é o intérprete da Constituição, cabe a ele preencher a lacuna. Mas, quando a votação foi ao pleno do tribunal, houve empate. Foi aí que a presidente do STF, Carmen Lúcia, vacilou, dando ao Senado a prerrogativa de decidir também a respeito de medidas cautelares. Foi a salvação de Aécio.

Certo que o senador mineiro não atirou em ninguém, mas nos deu a todos um belo tapa na cara, ao usar o mandato como gazua para extorquir dinheiro. O Senado – com a luxuosa ajuda das emendas de Temer – completou o serviço, passando-nos um cangapé.

Enfim, o artigo 53 da Constituição deveria resumir-se ao enunciado: “Os deputados e senadores são invioláveis, civil e penalmente, por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. Crimes comuns deveriam ser tratados como tais.

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