Reprodução da coluna “Menu Político”, caderno “People”, edição de 22/10/2017 do O POVO.

Redução de verbas pode acabar com programa de cisternas

Quem viaja pelos interiores nordestinos há de notar, com destaque – além da paisagem natural, que muda quanto mais se distancia dos centros urbanos -, dois engenhos construídos pelas mãos humanas: uma antena parabólica no telhado das casas e uma cisterna no quintal.

O primeiro, a antena, um equipamento de alta tecnologia, traz para dentro das casas o colorido faiscante das imagens de TV; o segundo, a cisterna de placas de cimento, garante um bem essencial à vida: a água. Essa tecnologia absolutamente simples, porém altamente eficaz, surgiu da inteligência e das mãos de um nordestino de origem humilde, pedreiro de profissão.

O projeto para disseminar essa tecnologia de armazenamento de água nasceu da iniciativa da Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), depois foi encampada pelo governo Lula, em 2003. Desde que o programa começou, mais de um milhão de cisternas foram instaladas, beneficiando mais de cinco milhões de pessoas, que não dispunham de fornecimento regular de água potável. A ASA é responsável por implementar mais de 60% das cisternas, por meio de repasses do Ministério do Desenvolvimento Social.

No entanto, o programa agora corre o risco de estagnar-se, devido ao corte de 92% em seu orçamento, previsto para o próximo ano. Segundo a Articulação Semiárido, esse percentual tem como referência o orçamento de 2017, que, por sua vez, representa um pouco mais de 1/4 do volume de recursos comparado a 2012.

O valor reservado pelo governo de Michel Temer para a implementação de tecnologias de captação de água da chuva para o próximo ano (consumo humano e produção de alimentos) é de R$ 20 milhões. Esse valor permitirá a construção de apenas 5.453 cisternas em todo o País. Porém, somente no semiárido, 350 mil famílias esperam por uma cisterna.

O fato é que Temer está desidratando os programas sociais e de transferência de renda, ao mesmo tempo em que mantém o discurso de que vai preservá-los. O Bolsa Família, por exemplo, já sofreu um duro golpe, com a exclusão de milhares de famílias; agora o anúncio da brutal redução no orçamento para a construção de cisternas.

E o corte de verbas vem justamente quando o programa de cisternas recebe o reconhecimento internacional, com o Prêmio Política para o Futuro 2017, concedido pela Organização das Nações Unidas (ONU). O programa foi considerado a segunda iniciativa mais importante do mundo no combate à desertificação. A cerimônia de entrega da premiação ocorreu em setembro, durante a 13ª Conferência da Convenção das Nações Unidas, realizada na China.

Deve-se também às cisternas de placas e ao Bolsa Família o fato de o sertanejo ter suportado por cinco anos seguidos o flagelo da seca, sem precisar deslocar-se para as cidades. Mesmo com a pior estiagem que atingiu o Nordeste nos últimos 100 anos, não houve saques famélicos em mercados do interior, muito comuns em passado recente. Com a tecnologia, o sertanejo pode captar as águas da chuva ou ter a sua cisterna recarregada por caminhões-pipa, mantendo a agricultura de sobrevivência.

Ainda assim, além do governo, alguns setores da sociedade permanecem insensíveis à importância desses programas sociais, que podem dar um mínimo de dignidade aos deserdados dos sertões e das cidades.

NOTAS

UM MILHÃO
Em 2014 levantei os dados sobre a construção das tecnologias de captação e armazenamento de água e escrevi a reportagem “Meta de um milhão de cisternas será alcançada este ano”. Pode ser vista aqui: https://goo.gl/BPxyGi.

O INVENTOR
Também falei com Manoel Apolônio de Carvalho, o Nel, um nordestino que migrou para São Paulo, aos 17 anos de idade. Trabalhando como pedreiro, observou que a técnica de moldagem de cimento poderia ser usada para construir cisternas de placas. Voltou para a Bahia e começou a aplicar o seu engenho, que se disseminou-se por meio da Articulação Semiárido. O texto pode ser visto aqui: https://goo.gl/ZppGEZ.

CRÉDITO
ASA: Premiado pela ONU, Programa Cisternas pode ter corte de 92% no orçamento para 2018.

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