É compreensível – depois de parecer que a direita estava em uma ascendente irrefreável na América Latina e em vários outros países – a comemoração da esquerda em torno dos movimentos contra governos identificados com o neoliberalismo, que estão levando milhares de pessoas à ruas em várias cidades do mundo.

GURUS
Além disso, dificuldades e reveses eleitorais atingem muitos dos “gurus” dos movimentos conservadores: Donald Trump (acossado por um processo de impeachment nos Estados Unidos), Boris Johnson (primeiro-ministro do Reino Unido não consegue unificar o próprio partido em torno do Brexit) e Viktor Orbán (primeiro ministro da Hungria, que viu seu partido ser derrotado na eleição à prefeitura de Budapeste). Na América Latina, fora Evo Morales (Bolívia), cuja vitória já parece consolidada, deverão sair vitoriosos candidatos de esquerda ou centro-esquerda na Argentina*, Uruguai.

20 CENTAVOS
No entanto, é recomendável que a alegria não tolde a capacidade de análise, como ocorreu em 2013 no Brasil, cuja “direitização” de um movimento que nasceu em grupos de esquerda surpreendeu meio mundo, inclusive os articuladores da iniciativa de protestar contra o aumento de 20 centavos no preço do transporte público.

A exemplo do que acontece agora no Chile, os protestos transbordaram para vários tipos de exigências – inclusive contra a corrupção – e foram capturada por uma direita radical que nos legou Jair Bolsonaro como presidente. Ressalte-se, porém, que isso não faz essas manifestações “iguais” onde quer que elas aconteçam, pois cada uma tem suas particularidades.

REVOLTAS AMBÍGUAS
Em um artigo de dezembro de 2018 a socióloga Rosana Pinheiro-Machado classificou esses protestos como “revoltas ambíguas”. Para ela são “uma resposta imediata do acirramento de austeridade do neoliberalismo do século 21, marcado pela crescente captura dos estados e das democracias pelas grandes corporações”.

Porém, afirmou, não há como classificar esses movimento como sendo de “direita” ou de “esquerda”, pois “as revoltas do precariado não têm forma acabada: elas são um início, um grito, um pedido de basta”. A mais, para ela, “os trabalhadores precarizados tendem à direita pela própria natureza injusta e individualista de seu trabalho, mas isso não elimina a injustiça que está lá de forma latente”. (Lembrem-se do Uber).

MONSTRO DISFORME
Desse modo, afirma a professora, “direita e esquerda são os polos para onde as rebeliões ambíguas podem pender. São, portanto, um devir, uma disputa, um fim”. Assim, recomenda ela, a esquerda precisa disputar, primeiro o que é possível: indivíduos, redes e inserções, “com forte discurso de identidade de classe trabalhadora, com retorno à radicalização de discurso, que dialogue com a profunda e latente frustração popular”.

Ou seja, para a socióloga, as manifestações são um campo em disputa, que pode tender à esquerda ou à direita, mas não haverá um movimento confluente para um lado ou para outro. Assim sendo, a esquerda “não vai conseguir disputar as revoltas ambíguas em sua totalidade, porque elas são monstros disformes mesmo”.

CHILE, UM PAIS PRIVATIZADO
Em entrevista à Fundação Perseu Abramo (25/10/2019), Nayareth Quevedo, subsecretária para o Cone Sul da Internacional de Serviços Públicos (ISP) – diretamente envolvida na organização das manifestações no Chile -, dá declarações que confirmam a análise de Rosana Pinheiro-Machado.

Ela diz que ainda “está tudo muito confuso” sobre a condução política do movimento, mesmo com as centrais sindicais se esforçando para organizar uma liderança “mais bem definida”. Embora haja participação popular, dos estudantes e trabalhadores, Nayareth diz que tudo ainda “está em aberto”. Dá como exemplo recente pesquisa: se as eleições presidenciais fossem hoje a disputa se daria entre o ultradireitista Jose Antonio Kast e Beatriz Sanchez, da Frente Ampla (esquerda) “(Kast) pode ser o nosso Bolsonaro”, afirma a sindicalista.

BATENDO PANELA
Nayareth diz ainda que os protestos estão se espalhando por toda a sociedade, inclusive entre as pessoas de alta renda. Moradores de “mansões tem descido à praça Itália (onde ocorrem as manifestações), com suas panelas na mão, para protestar contra o governo”. (Não sei se a sindicalista sabe o que aconteceu no Brasil, mas por aqui, bater panela acabou mal.)

MERCADORIA
Ecoando Pinheiro-Machado, Nayaret diz não haver nada público no país “Tudo está privatizado”. Ou seja, em nome das corporações, o Estado abandonou a população à sua próprio sorte. “Em 1983 (ano da reforma da Previdência no Chile) se prometia que as pessoas iam se aposentar com 90% dos seus salários, e hoje elas estão se aposentando com 20% dos salários”, diz a sindicalista. No Chile, Previdência, água, luz educação e saúde são tratados como mercadorias.

DESCULPAS
A situação é tão grave que, depois de o presidente Sebastián Piñera pedir perdão ao povo e apresentar um pacote de medidas sociais, os patrões resolveram tomar alguma iniciativa. O empresário mais rico do país, Andronico Luksic, conta Nayareth, dono de 20% do sistema financeiro, de um canal de televisão e de várias outras empresas, anunciou que nenhum trabalhador seu iria ganhar menos de US$ 700 por mês. O salário mínimo no Chile é de US$ 400. Em seguida também pediu desculpas aos trabalhadores.

A questão é que essas medidas, que deveriam ser tomadas preventivamente, são anunciadas quando as ruas estão pegando fogo, sendo difícil fazer com que os manifestantes voltem para casa. Isso deveria ser um aviso para o Brasil, pois é esse modelo falido, questionado em todo o mundo, que o ministro da Economia, Paulo Guedes, está querendo implementar no Brasil

O PERIGO DOS BOLSONAROS
Mas o fato é que as “revoltas ambíguas” são um campo em disputa, como analisou a socióloga Rosana Pinheiro-Machado, que vai exigir da esquerda e dos democratas a compreensão do que está em jogo, de modo que se evite que outros bolsonaros se apropriem do movimento e levem países em direção à treva que que ele está querendo levar o Brasil.

PS. Escrevi outros três artigos sobre o Chile que estão sem sequência neste blog.

*O artigo foi publicado antes do resultado da eleição presidencial na Argentina, da qual saiu vitoriosa a chapa Alberto Fernández/Cristina Kirchner, considerada de “esquerda”.