diario20genioPara escrever o que vai se seguir, estou usando pela primeira vez sapatos de verniz que nunca consegui utilizar durante muito tempo, porque são horrivelmente apertados. Em geral, calço-os exatamente antes de começar uma conferência. A pressão dolorosa que eles exercem em meus pés acentua ao máximo minhas capacidades oratórias. Esta dor fina e massacrante faz com que eu cante como um rouxinol ou como um desses cantores napolitanos que usam, eles também, sapatos apertados demais. A vontade física visceral e a tortura penetrante provocada por meus sapatos de verniz obrigam-me a fazer jorrar das palavras verdades condensadas, sublimes, generalizadas pela suprema inquisição da dor suportada por meus pés. Assim, calço meus sapatos e começo a escrever masoquistamente e sem precipitação toda a verdade sobre minha exclusão do grupo surrealista.

Salvador Dali

[Diário de um Gênio. Trad. Luís Marques e Martha Gambini. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989, p. 19.]

 

Sua expressão de espanto expressa pelos olhos arregalados faz lembrar um lunático num acesso de fúria. A completar a estranheza da figura, um bigode fino com as extremidades espetadas para cima sempre prontas para, segundo ele, “captar emanações marcianas”. Certamente não será difícil identificar a figura a que se refere a descrição. Trata-se do pintor catalão Salvador Dali. Nascido em Figueras, na Espanha, em 11 de maio de 1904, Dali faleceu na mesma cidade em 23 de janeiro de 1989, aos 84 anos de idade, deixando uma obra que se inscreve entre as mais singulares e inquietantes de toda a história da arte.

No dia 1.º de maio  de 1953, escrevia Dali: “Há um mês estamos em Port Lligat, e hoje, como no último ano, resolvo retomar meu diário. Inauguro o 1.º de maio daliniano trabalhando freneticamente, impulsionado por uma doce angústia criativa. Meus bigodes nunca foram tão longos. Todo o meu corpo está fechado em minhas roupas. Somente meus bigodes saem para fora delas” (p. 81). Essas palavras estão registradas no “Diário de um Gênio”, livro publicado por Salvador Dali em 1964.

Tenho lido este livro desde que o adquiri, há nove anos, sempre com renovado prazer. Quando quero dar boas gargalhadas, retomo a leitura de alguns trechos do livro, como aquele que pus em epígrafe a este texto, ou um outro, em que o pintor catalão diz:

“Mais uma vez, nesta manhã, enquanto estava no banheiro, fui tocado por uma intuição genial. Aliás, minhas fezes foram incrivelmente singulares, fluidas, inodoras. Estava preocupado com o problema da longevidade humana, por causa de um octogenário que trabalha sobre esta questão e que acaba de se lançar no Sena em um pára-quedas vermelho. Tenho a intuição de que, se conseguíssemos tornar o excremento humano tão fluido quanto o mel que escorre, a vida do homem alongar-se-ia, pois o excremento (segundo Paracelso) é o fio da vida, e cada interrupção ou peido é apenas um minuto da vida que foge” (p. 63). 

O que faz de Dali ser para mim uma figura apaixonante é a capacidade revelada ao longo de sua vida inteira de transformar sua loucura, seus desvarios, sua megalomania, em arte. Ele próprio, no Diário, se declara histérico. Embora, em certa ocasião, afirme: “A diferença entre mim e um louco é que eu não sou louco”.

Suas pinturas são, de fato, geniais, especialmente pela subversão do cotidiano. Na pintura de Salvador Dali uma coisa nunca é que o parece. Tudo é mutante e mutável. É por isso que, para melhor sentir o “Diário de um Gênio” é necessário, pelo menos, alguma familiaridade com suas pinturas. A um olhar superficial, a maioria delas parecerão absurdas. Mas, o que é absurdo? Absurda é a própria vida.

A genialidade de Dali ancora-se, entre outras coisas, na habilidade em conseguir conferir um sentido ao absurdo, através da subversão das formas. Paralelo a isso, ele encontrou uma estratégia para atribuir um sentido aos acontecimentos aparentemente fortuitos, ao estabelecer conexões entre os fatos da vida.

A propósito, afirma Jorge Coli numa das orelhas do “Diário de um Gênio”: “Dali contava, ainda, com coincidências engendradas por um acaso providencial e miraculoso, que lhe forneciam sinais de coerência no absurdo do mundo, dando a si próprio a afirmação da sua genialidade”. 

Quanto a esse aspecto, de minha parte nada preciso dizer, bastando lembrar o nome que atribuí a este blog. Os supostos acasos não são acasos. Tudo que acontece a uma pessoa está conectado e tende para a realização de um objetivo, embora nem sempre suficientemente claro ou explícito.

No Prólogo do Diário de um Gênio, escreveu Dali: “O presente livro provará que a vida cotidiana de um gênio, seu sono, sua digestão, seus êxtases, suas unhas, seus resfriados, seu sangue, sua vida e sua morte são essencialmente diferentes do resto da humanidade. Portanto, este livro único é o primeiro diário escrito por um gênio”. E adverte, a seguir: “É claro que nem tudo será dito hoje. Haverá páginas em branco neste diário que cobre os anos de 52 a 63 de minha vida re-secreta. A meu pedido e de acordo com meu editor, alguns anos e alguns dias devem, por enquanto, permanecer inéditos. Os regimes democráticos não estão aptos a receber as revelações fulminantes às quais estou habituado” (p. 15).     

Leiam o “Diário de um Gênio” e deliciem-se com as tiradas maravilhosas e hilariantes deste louco genial, Salvador Dali.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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