Digitalizar0002Há  muito tempo, na Índia, conheci um venerável poeta persa que me disse ter a poesia da Pérsia, amiúde, dois significados: um, interno e outro, externo. Recordo-me da grande satisfação que produziram em mim suas explicações a respeito do duplo siginificado de vários poemas persas. Um dia, quando me encontrava profundamente concentrado nas páginas do Rubaiyat de Omar Khayyam, contemplei, de súbito, as paredes dos seus significados externos desmoronarem, e a imensa fortaleza interna de áureos tesouros espirituais ofereceu-se, aberta, ao meu olhar. Desde então, tenho admirado a beleza do castelo de sabedoria interior, antes invisível, do Rubayyat. Tenho sentido que esse castelo onírico da verdade, que pode ser visto por qualquer olho perspicaz, haveria de ser um santuário para muitas almas que, invadidas pelos exércitos inimigos da ignorância, estivessem a buscar refúgio.

Paramahansa Yogananda

[Yogananda, Paramahansa. O Vinho do Místico: O Rubayyat de Omar Khayyam, Interpretação Espiritual (A partir da tradução do Rubayyat de Edward FitGerald). – Traduzido em português pela Self Realization Fellowship. Los Angeles: Califórnia, USA: 1998, p. ix.]

Na última quarta-feira comentei neste blog a tradução do Rubaiyat feita por Manuel Bandeira, editada em 2001 pela Ediouro. No texto, informei que, nesta terça-feira, comentaria uma outra tradução do Rubaiyat, neste caso, a que o Mestre indiano Paramahansa Yogananda fez a partir da tradução inglesa de Edward FitzGerald. Ei-la, pois.

Na Introdução redigida para o livro, Yoganandají afirma, a propósito do poema: “Muitas de suas estrofes são tão puramente espirituais que dificilmente pode-se derivar delas algum significado material;  é o caso, por exemplo, das quadras XLIV, LX e LXVI. (…) Com a ajuda de um erudito persa, traduzi o Rubaiyat original para o inglês. Descobri, porém, que embora literalmente traduzido, ele carecia do espírito ardente do original de Khayyam. Depois que comparei essa tradução com a de FtzGerald, compreendi que esta última fora divinamente inspirada para captar, em inglês, a alma dos escritos de Omar em palavras gloriosamente musicais. Portanto, decidi interpretar o significado interno oculto dos versos de Omar a partir da tradução de FitzGerald, e não da minha, ou de qualquer outra que houvesse lido” (p.x).

Yoganandají procedeu da seguinte maneira: primeiro, ele oferece a tradução da quadra de Khayyam; segue-se um glossário em que explica algumas palavras ou expressões usadas pelo autor; por fim, oferece uma interpretação da quadra. Citemos, como exemplo, a tradução da primeira quadra, conforme a estrutura adotada pelo Mestre indiano:

Desperta! O Alvorecer no Graal da Noite atira/ A Pedra que às Estrelas seu fugir produz,/ E o Caçador do Leste acaba de prender/ A Torre do Sultão em um Laço de Luz.

Glossário: Alvorecer: a alba do despertar da ilusória existência terrena. Graal da noite: as trevas da ignorância, que aprisonam a alma imortal na consciência mortal. Pedra: a disciplina espiritual. Estrelas: a atraente cintilação dos desejos materiais. Caçador do Leste: a sabedoria oriental, destruidor poderoso da ilusão. Torre do sultão: a alma soberana. Laço de luz: a iluminação divina da sabedoria, que destrói as trevas cativas que cercam a alma.   

Interpretação Espiritual: “Canta o silêncio interior: Desperta! Abandona o sono da ignorância, pois o alvorecer da sabedoria chegou. Lança a dura pedra da disciplina espiritual que rompe o cálice do sombrio desconhecimento, pondo a fugir as pálidas estrelas dos desejos materiais, de enganoso brilho. Olha que a Sabedoria Oriental, o Caçador e Destruidor da ilusão, capturou, em um laço de Luz, o orgulhoso minarete da alma principesca, dispersando as trevas mortais que a aprisionavam” (p. 3).

O vinho, onipresente no poema de Khayyam, é considerado por Yoganandají como uma metáfora: “Omar afirma, claramente”, escreve o Iogue, “que o vinho simboliza a embriaguez do divino amor e da divina alegria” (p. x). O últimno verso da quadra XLI é assim traduzida: “A nada me entreguei a fundo, só ao Vinho!” No glossário, é atribuído ao vinho o seguinte sentido: “o vinho inebriante da real percepção divina”. Na Interpretação Espiritual do verso citado escreve Yoganandají: “Nunca mergulhei completamente em qualquer outra coisa que não o vinho do êxtase” (p. 127).

Valendo-se da metáfora de sorver o vinho, Yoganandají escreveu um texto, publicado como adendo no final da tradução do Rubaiyat, intitulado “O Vinho Onírico do Amor de Omar Khayyam”. Eis um trecho de grande beleza poética e mística:

Eu sou o Amor. Porém, a fim de experimentar o ato de amar e a dádiva do amor, dividi-Me em três: o amor, o amante e o amado. Meu amor é belo, puro, eternamente jubiloso; e Eu o saboreio de muitas maneiras, por meio de muitas formas.

Como pai, bebo o amor reverente do manancial do coração de meu filho. Em forma de mãe, bebo o néctar do amor incondicional do cálice da alma de meu bebezinho. Na criança, absorvo o amor protetor da razão justa do pai. Como infante, bebo o amor imotivado no santo graal da materna atração. Patrão, bebo o amor cheio de consideração que vem do frasco da amabilidade do servidor. Como servidor, sorvo o amor respeitoso no copo do apreço do patrão. Na forma de guru-preceptor, desfruto do mais puro amor, proveniente do cálice da devoção do discípulo em entrega total. Na forma de amigo, bebo dos mananciais borbulhantes do amor espontâneo. Como amigo divino bebo, a grandes sorvos, as águas cristalinas do amor cósmico, provenientes do reservatório dos corações que adoram a Deus (p. 220).   

No texto escrito para a orelha da edição do Rubaiyat comentada por mim na última quarta-feira, afirma Affonso Romano de Sant’Anna:  “Faz sentido que seja Manuel Bandeira o tradutor de Omar Khayyam, aquele poeta persa do século XI, que com poemas escritos em forma de quadras, chamados Rubaiyat, tornou-se um dos autores mais populares do mundo. Faz sentido porque a obra de Bandeira, iniciada na estética do decadentismo, tem algo a ver com o sempre referido hedonismo de Omar Khayyam e a celebração de vinhos e mulheres” [Rubaiyat/ Omar Khayyam; tradução Manuel Bandeira (de Franz Toussaint). – Rio de Janeiro: Ediouro, 2001].

Em contrapartida, na contracapa da tradução de Paramahansa Yogananda está escrito o seguinte: “O Rubayyat de Omar Khayyam, na tradução de Edward FitzGerald tem sido, por muito tempo, um dos mais apreciados e menos compreendidos poemas em língua inglesa. Lançando luz sobre o texto com uma nova interpretação, Paramahansa Yogananda  – renomado autor da Autobiografia de um Iogue e de outras obras, e amplamente reverenciado como um dos grandes santos contemporâneos da Índia – revela a essência mística desta enigmática obra-prima, trazendo à luz a verdade e a beleza mais profundas que há por detrás do véu de suas metáforas. Comumente consideradas uma celebração do vinho e de outros prazeres mundanos, essas líricas quadras persas exibem sua verdadeira voz quando são lidas como hino às alegrias transcendentes do Espírito”.  

Ler uma e outra traduções do Rubaiyat, assim como o que é afirmado a respeito delas, me levou a refletir sobre os diversos e tão díspares destinos que pode seguir um texto ou um poema. De fato, arrisco dizer que, em última instância, um escrito não pertence ao autor que o escreveu. Ele pertence, de fato, a quem o leu, pois é o leitor quem, atribuindo-lhe um sentido, dele se apropria, à revelia do autor.

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Vasco Arruda

Psicólogo, professor de História das Religiões e Psicologia da Religião.

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